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Uma geladeira comunitária para combater o desperdício

21 set 2015 - 12h32
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Lares e restaurantes da cidade basca de Galdakao, na Espanha, se juntam para não jogar alimentos fora e inauguram refrigerador solidário. Crise econômica e relação especial da região com a comida motivam o projeto.

É hora do almoço no Berrio, um tradicional restaurante basco nas colinas verdes nos arredores da cidade espanhola de Bilbao. A chef Itziar Eguileor acaba de perceber que cozinhou alcachofras demais.

"Qualquer sobra costumava ir direito para o lixo", diz Eguileor, balançando a cabeça e apontando para um recipiente do lado de fora da cozinha. "Temos vários contêineres lá fora."

A chef diz que se sentia mal em jogar quilos e quilos de alimentos perfeitamente comestíveis. Segundo Eguileor, ela telefonava para instituições de caridade e asilos de idosos na esperança de que viessem pegar as sobras – sem sucesso.

"A maioria deles dizia ter seus próprios cozinheiros e que não aceitaria nossa comida", afirmou a chef. "Estou empregada e tenho sorte de poder pagar a minha hipoteca. Mas há pessoas em dificuldades que poderiam usar estes alimentos."

Hoje a situação mudou, e as sobras do restaurante, assim como a de muitos outros, não vão mais para o lixo. Em vez disso, elas vão parar no primeiro refrigerador comunitário da Espanha – um projeto pioneiro para compartilhar o excesso de alimentos e reduzir o desperdício.

Comida para todos

Entregas como a de Eguileor chegam várias vezes por dia ao refrigerador solidário. Trata-se de uma geladeira de tamanho padrão, como a da maioria das casas. Ela foi colocada na calçada de Galdakao, cidade basca com 30 mil habitantes. O seu cabo elétrico se estende por toda a calçada até um centro comunitário próximo. Qualquer um pode depositar ou retirar comida do refrigerador.

"Depende do dia, mas costumamos trazer de seis a oito potes cheios de comida por dia", diz Eguileor enquanto descarrega os mantimentos. "A única coisa que não trazemos são sobremesas, porque elas nunca sobram!"

Mesmo que a economia espanhola esteja saindo lentamente da recessão, a crise mudou os valores das pessoas, especialmente quando se trata de comida. O fato de supermercados, restaurantes e lares jogarem fora, diariamente, centenas de quilos de restos de alimentos vencidos é difícil de engolir num país onde muitos ainda lutam para pôr comida na mesa.

"Ideia louca e brilhante"

O projeto é uma ideia de Alvaro Saiz, que administrava um banco de alimentos para a população desfavorecida de Galdakao, sua cidade natal. "A ideia de um refrigerador solidário teve início na crise econômica – as imagens de pessoas procurando alimentos no lixo, a indignidade disso!", explicou Saiz. "Foi isso que me fez pensar sobre a quantidade de comida que desperdiçamos."

Então, ele começou a elucubrar sobre como reduzir o desperdício de alimentos. Saiz disse ter sido inspirado por uma iniciativa alemã que usava a internet para divulgar onde as pessoas poderiam pegar restos de comida.

Saiz desejava, no entanto, algo diferente para sua cidade natal, menos tecnológico. Ele queria criar um sistema que seria útil até mesmo para os seus vizinhos mais idosos, que não estão conectados à internet. Então teve a ideia da geladeira comunitária. Em abril deste ano, apresentou a sugestão ao prefeito de Galdakao.

"Quando ele chegou à prefeitura com essa ideia, eu pensei: louca e brilhante! Como eu poderia dizer não?", conta o prefeito Ibon Uribe.

A prefeitura aprovou imediatamente o pequeno orçamento de 5 mil euros, para pagar o refrigerador e um estudo inicial de segurança de saúde, como também a eletricidade e a manutenção. "Demos a esse refrigerador um status legal extraordinário e independente – de forma que a cidade não possa ser processada se alguém ficar doente", diz o prefeito.

Compartilhando a economia

Existem regras: nenhuma carne crua, peixe ou ovos. Comida caseira precisa ser etiquetada com data e tem que ser jogada fora depois de quatro dias. Voluntários de Galdakao se revezam na limpeza do eletrodoméstico. Até agora, não se registraram abusos. De fato, uma comida raramente fica ali todo um dia, quanto menos quatro.

"Os restaurantes deixam seus restos de tapas no período da noite – e de manhã eles já se foram!", diz Javier Goikoetxea, consultor que trabalha em projetos de impacto social e também como voluntário da associação que limpa o refrigerador. "Temos até vovós que cozinham especialmente para a geladeira", acrescentou.

Quando um vizinho, um imigrante marroquino desempregado, passa por ali e abre o refrigerador, seu rosto se ilumina. "Sinceramente, é tão bom poder vir aqui quando o dinheiro está apertado, abrir esta geladeira e encontrar comida realmente boa – pão, tomate, verduras, carne – é incrível!", exclama Issam Massaoudi.

Durante a noite

A verdadeira beleza do projeto, dizem os organizadores, está no fato de ninguém saber realmente quantas pessoas o usam. A vergonha da pobreza força algumas pessoas a recorrerem ao refrigerador durante a noite.

A geladeira comunitária pode ser um legado da crise econômica espanhola, que fez da parcimônia uma necessidade. Entretanto, em Galdakao, a taxa de desemprego gira em torno dos 13% – quase a metade do resto da Espanha. O sistema de bem-estar social no País Basco é robusto e são poucos os residentes que passam fome.

De acordo com o prefeito de Galdakao, no entanto, a região basca tem uma relação especial com comida. Ela é famosa por sua gastronomia, especialmente em cidades como Bilbao e San Sebastián.

"Aqui, a comida é sagrada – é algo venerado", afirmou o sorridente Uribe. "Então, valorizamos comer bem, como também conservar a comida – isso pertence à nossa cultura. E o refrigerador solidário faz parte disso."

Essa cultura parece estar se alastrando: outra geladeira comunitária foi aberta em Múrcia, cidade espanhola na costa do Mediterrâneo. E as escolas estão começando a fazer excursões até o refrigerador de Galdakao, para ensinar as crianças sobre como reduzir o desperdício e compartilhar alimentos.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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