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ESPECIAL-Como Mianmar puniu dois repórteres por revelarem uma atrocidade

3 set 2018 - 15h48
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Mais de uma vez o governo de Mianmar pareceu prestes a ter suas acusações arruinadas contra dois jornalistas jovens que expuseram o massacre de 10 homens muçulmanos e implicaram as forças de segurança nos assassinatos.

Jornalista da Reuters Wa Lone deixa tribunal após ouvir veredicto em Yangon
 3/9/2018    REUTERS/Myat Thu Kyaw
Jornalista da Reuters Wa Lone deixa tribunal após ouvir veredicto em Yangon 3/9/2018 REUTERS/Myat Thu Kyaw
Foto: Reuters

No dia 20 de abril, uma testemunha da acusação revelou em audiências pré-julgamento que a polícia plantou documentos militares nos repórteres da Reuters Wa Lone e Kyaw Soe Oo para incriminá-los pela violação da Lei de Segredos Oficiais do país. Essa confissão provocou espanto na sala do tribunal.

    Um policial disse à corte que queimou notas que escreveu à época da prisão dos repórteres, mas não explicou por que. Várias testemunhas da Procuradoria contradisseram o relato da polícia a respeito do local das prisões, e um major da polícia reconheceu que as informações "secretas" supostamente encontradas com os repórteres na verdade não eram um segredo.

Fora do tribunal, militares até admitiram que os assassinatos de fato aconteceram.

    Estes eventos bombásticos reforçaram os argumentos centrais da defesa: as prisões foram um esforço "pré-planejado e encenado" para silenciar a cobertura verídica de Wa Lone e Kyaw Soe Oo.

No final das contas, os furos no caso não bastaram para impedir o governo de punir os dois repórteres por revelarem um capítulo hediondo da história da democracia incipiente de Mianmar. Nesta segunda-feira, depois de 39 aparições na corte e 265 dias de encarceramento, Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram considerados culpados de violar a Lei de Segredos Oficiais e condenados a sete anos de prisão.

    O juiz Ye Lwin, de Yangon, distrito do norte do país, decidiu que os dois repórteres afrontaram a lei ao coletarem e obterem documentos confidenciais. Ao pronunciar seu veredicto no pequeno tribunal, ele disse que se descobriu que "documentos confidenciais" encontrados com os dois réus teriam sido úteis "para inimigos do Estado e organizações terroristas".

    Após a leitura da decisão, Wa Lone disse a um agrupamento de amigos e repórteres para não se preocuparem.

"Sabemos que não fizemos nada errado", afirmou ele aos colegas do lado de fora da corte. "Não temo nada. Acredito na justiça, democracia e liberdade".

O caso de Wa Lone e Kyaw Soe Oo se tornou um marco da liberdade de imprensa em Mianmar e um teste da transição da nação para a governança democrática depois que décadas de controle de uma junta militar terminaram em 2011. Os militares, porém, ainda controlam ministérios essenciais e têm 25 por cento de assentos garantidos no Parlamento, o que lhes dá muito poder na democracia ainda jovem.

Durante as audiências o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e líderes de vários países ocidentais pediram a libertação dos repórteres. Após o veredicto, Scot Marciel, embaixador dos Estados Unidos em Mianmar, disse que a decisão foi "profundamente perturbadora" para todos que lutam pela liberdade de imprensa no país. "Estou triste por Wa Lone, Kyaw Soe Oo e suas famílias, mas também por Mianmar".

O editor-chefe da Reuters, Stephen J. Adler, afirmou que os dois repórteres foram condenados "sem nenhuma prova de irregularidade e perante provas contundentes de uma cilada policial". O veredicto, disse, foi "um grande passo para trás na transição de Mianmar para a democracia".

O porta-voz do governo de Mianmar, Zaw Htay, não respondeu a pedidos de comentários sobre o veredicto.

    Uma semana antes da decisão, investigadores da ONU disseram em um relatório que os militares de Mianmar realizaram assassinatos em massa e estupros grupais de muçulmanos rohingyas com "intenção genocida" e que o comandante-chefe e cinco generais deveriam ser punidos. O relatório ainda acusou o governo de Aung San Suu Kyi de contribuir para "o cometimento de crimes atrozes" por não proteger minorias de crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Mianmar rejeitou tais conclusões.

A líder de fato da nação, Suu Kyi, que passou cerca de 15 anos em prisão domiciliar durante os tempos da junta, fez poucos comentários públicos sobre o caso. Em um comentário raro de junho a homenageada com um Prêmio Nobel da Paz disse à emissora japonesa NHK que os repórteres não foram presos por cobrirem a violência no oeste de Mianmar. "Eles foram presos por violarem a Lei de Segredos Oficiais", afirmou.

A lei data de 1923, quando Mianmar - então conhecida como Burma - ainda era um domínio britânico. A acusação contra os jornalistas implica em uma pena máxima de 14 anos. Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram considerados culpados conforme a Seção 3.1 (c) da lei, que contempla qualquer documentação oficial secreta que "pode ser ou é concebida para ser, direta ou indiretamente, útil a um inimigo".

À época da detenção, em dezembro, Wa Lone, hoje com 32 anos, e Kyaw Soe Oo, hoje com 28, trabalhavam em uma investigação da Reuters sobre o massacre de 10 muçulmanos rohingyas de um vilarejo durante uma operação repressiva do Exército no Estado de Rakhine, no oeste do país. A violência levou mais de 700 mil rohingyas a fugirem para Bangladesh, onde atualmente vivem em vastos campos de refugiados.

Os EUA acusaram o governo de faxina étnica contra os rohingyas, minoria muçulmana amplamente rejeitada na nação majoritariamente budista. Mianmar sustenta que suas operações em Rakhine foram uma reação legítima contra ataques de insurgentes rohingyas a forças de segurança.

A Reuters publicou sua investigação sobre o massacre em 8 de abril. Relato do assassinato de oito homens e dois estudantes secundários em setembro no vilarejo de Inn Din, a reportagem desencadeou clamores internacionais por um inquérito crível sobre derramamento de sangue mais amplo em Rakhine.

A matéria e as fotos que a acompanham representaram a primeira confirmação independente do que ocorreu em Inn Din. Duas das fotos obtidas pelos repórteres mostram os homens ajoelhados, em uma com as mãos atrás das cabeças e em outra com as mãos atadas às costas. Uma terceira mostra seus corpos, alguns aparentemente com ferimentos de bala, outros com cortes, em uma cova rasa manchada de sangue.

PRIVADOS DE SONO

O julgamento dos repórteres colocou Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 1991, sob os holofotes incômodos da atenção global. Louvada como defensora da democracia por confrontar a junta, Suu Kyi foi libertada da prisão domiciliar em 2010. Seu partido venceu uma eleição geral em 2015 e formou o primeiro governo civil de Mianmar em mais de meio século no início de 2016.

Mas seu gabinete inclui três generais, e em um discurso do mês passado ela classificou estes militares como "todos muito doces".

No início deste ano o político norte-americano veterano Bill Richardson disse que Suu Kyi ficou "furiosa" com ele quando ele abordou o caso dos jornalistas da Reuters.

Richardson, ex-membro do gabinete do ex-presidente Bill Clinton, renunciou em janeiro de uma comissão internacional criada por Mianmar para oferecer conselhos sobre a crise dos rohingyas, dizendo que a entidade estava realizando um "acobertamento" e acusando Suu Kyi de carecer de "liderança moral". Na ocasião o gabinete de Suu Kyi disse que Richardson estava "buscando seus próprios objetivos" e que foi instado a renunciar.

Quando era líder da oposição, Suu Kyi criticava o tratamento da junta aos jornalistas. Em 2014, segundo relatos, ela descreveu como "muito excessiva" uma pena de 10 anos de trabalho forçado imposta a quatro jornalistas locais e seu chefe. Ele foram condenados por desrespeitar e violar a Lei de Segredos Oficiais.

"Embora existam afirmações de reforma democrática, isso é questionável quando os direitos de jornalistas estão sendo controlados", disse ela, de acordo com o jornal local Irrawaddy, aos repórteres em julho de 2014.

Um porta-voz do governo não respondeu a ligações da Reuters pedindo comentários sobre a colocação de Suu Kyi.

Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram presos na noite de 12 de dezembro. Ao saírem do restaurante, eles foram agarrados por homens à paisana e lançados em veículos separados.

Em julho, durante horas de depoimentos, eles contaram ao tribunal que suas cabeças foram cobertas com sacos pretos quando foram transportados a um local de interrogatório e que foram privados de sono durante três dias.

A certa altura Kyaw Soe Oo disse ter sido obrigado a ficar ajoelhado no chão durante ao menos três horas. Uma testemunha da polícia negou que os dois foram privados de sono e que Kyaw Soe Oo foi forçado a ficar ajoelhado.

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