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Modern Love: Para encontrar o amor, esfregue a protuberância da estátua

Apalpar uma estátua parecia um pouco estranho, mas grupos inteiros de turistas estavam fazendo isso, então eu também fiz. E Voilá!

17 out 2022 - 05h11
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THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Micah passava 60 horas por semana carregando e entregando pacotes. Ele reservava seus fins de semana para mim, aparecendo em quase todos os encontros com flores. Formado em uma faculdade religiosa, muitas vezes ele perguntava como estavam as coisas entre mim e Jesus, como ele poderia orar por mim. Ele sonhava em pagar seus empréstimos estudantis e construir sua própria casa.

Essa era sua palavra favorita: casa. Eu queria dar isso a ele.

Decorei seu apartamento que ficava em um porão de concreto no Natal, construindo uma lareira falsa com papelão pintado e cordões de luzes. No ano seguinte, passei nove meses costurando à mão uma colcha para ele.

Mas sempre que tentávamos namorar, eu era tomada por um pânico crescente, uma certeza instintiva de que essa não era a vida que eu queria. A única maneira de se livrar disso era dar um tempo. Durante esses intervalos, eu primeiro sentia paz e alívio, seguidos de solidão, remorso e medo de que Deus tivesse me enviado minha única chance de felicidade - e eu a estava rejeitando. Nós voltaríamos a ficar juntos, a tentar novamente. O ciclo se repetiria.

Na noite em que ele finalmente me disse não, agora já chega, ele me presenteou com um laptop MacBook Pro novinho em folha. Ele disse que acreditava em mim e queria investir nos meus sonhos, mesmo que não pudéssemos ter uma vida juntos. Um laptop de consolação. Minha mãe disse que foi a separação mais estranha que ela já tinha visto.

Nós dois éramos novos no campo do namoro e não conhecíamos o roteiro usual para separações. Mas eu sabia o que fazer com um coração partido: deixar a Carolina do Sul e voltar para a França. Anos antes, depois de outra rejeição romântica, fui dar aulas de inglês em um programa patrocinado pelo governo francês.

Agora esse programa voltava à minha mente, primeiro desencadeado por um spam da conta de e-mail hackeada de um ex-colega francês, depois por um anúncio no Facebook me lembrando que eu estava, aos 29 anos, na idade limite para fazê-lo novamente.

Eu não idealizava mais o fato de ir para fora do país, mas a sensação de estar presa superava minhas hesitações. Candidatei-me, assinei o contrato, providenciei meu visto e fiz planos para me mudar para Grenoble, uma cidade universitária nos Alpes que tinha uma força idílica pelas imagens do Google na Internet.

Fiz minha viagem por Paris e planejei um período de vários dias em um Airbnb no 20º arrondissement. Ashley, minha última amiga solteira, se juntou a mim nesse momento. Como eu, Ashley estava à deriva. Éramos jovens demais para estarmos desanimadas, mas já passávamos da idade de sair viajando para nos encontrarmos. Resolvemos ser companheiras perdidas.

A gente se viu vagando pelo cemitério Père Lachaise em uma tarde ensolarada no início de setembro.

"Aquele túmulo parece familiar", disse Ashley, olhando para uma cripta elevada com a estátua de um homem deitado de bruços ao longo dela. "Acho que é famoso".

"Provavelmente," eu disse. A maioria das coisas em Paris são.

Como se fosse uma deixa, um grupo de turistas passou e se reuniu ao redor do monumento. Ashley pesquisou o nome do ocupante do túmulo usando seu telefone e me deu um resumo.

"Victor Noir. Pseudônimo do jornalista parisiense Yvan Salmon. Foi baleado pelo primo de Napoleão Bonaparte III, Pierre. Contrário ao imperialismo francês."

"Ah," eu disse. "Então você está certa. Famoso." Eu me virei para percorrer o corredor em direção a outras figuras notáveis, mas Ashley continuou lendo.

"Aqui diz que seu túmulo é importante em Paris. O artista que criou sua estátua em repouso conseguiu colocar uma protuberância proeminente no meio das pernas da estátua. É um símbolo de fertilidade ou algo assim. Qualquer mulher que beijar os lábios de Victor, esfregar sua protuberância e sapatos e colocar uma flor em sua cartola, terá um bebê ou encontrará um marido dentro de um ano. É o que está dizendo."

Ashley e eu espiamos o grupo de turistas. A estátua era de fato notavelmente bem dotada e significativamente mais brilhante em certas áreas do que em outras, como se recebesse polimento regularmente. Com a cara enterrada em seu telefone novamente, Ashley riu.

As mulheres do grupo de turistas se aproximaram da estátua uma a uma. Lábios, protuberância, dedos dos pés. Lábios, protuberância, dedos dos pés. Depois que passaram para a próxima parada em sua excursão, ficamos sozinhas com Monsieur Noir.

"Você também vai fazer?" Eu perguntei.

Ser uma seguidora de Jesus vem com certas expectativas de conduta e pureza. Mas era uma estátua, para não mencionar uma experiência cultural. Certamente Deus poderia gostar da comédia e do espírito da coisa.

"Ah, eu vou", disse Ashley.

E assim, nós lustramos a estátua e enviamos nosso pedido para o universo. Ashley deu-lhe um polimento confiante, eu um toque envergonhado.

Então continuamos nosso passeio. Visitamos o museu do perfume Fragonard; vimos a Notre Dame apenas alguns meses antes do incêndio; fomos à Shakespeare and Company; e enfrentamos os bairros questionáveis ao redor da Torre Eiffel para testemunhar sua glória cintilante à noite. Então chegou a hora de seguirmos caminhos separados.

Eu gostaria de poder dizer que os Alpes franceses me curaram. Que eu desfrutei de sua beleza e encontrei o descanso espiritual e a direção que eu estava procurando.

Mas Grenoble me assustou. Ouvi histórias de assaltos ao meio-dia em que as vítimas foram atacadas com spray de pimenta. Certa vez, vi dois carros em um estacionamento em chamas. Outra vez, uma pedra quebrou a janela do ônibus ao lado do meu rosto enquanto eu voltava do trabalho para casa, espalhando fragmentos de vidro pelo assento.

As vértebras instáveis nas minhas costas me incomodavam regularmente, meio que me paralisando. Isso desencadeou minha depressão latente. Em vez de socializar com os outros assistentes de ensino, escondia-me no meu quarto. Sentia falta do meu gato e dos meus pais. Eu sentia falta do homem que me amava, seus olhos gentis e sua risada rouca. Talvez, pensei, Deus ainda pudesse curar a divergência entre nós. Victor Noir selaria o compromisso. Eu só tinha que aguentar o suficiente para chegar em casa.

Micah e eu começamos a conversar novamente pelo FaceTime. Primeiro mensalmente, depois semanalmente. Antes do meu retorno, impomos a nós mesmos um jejum de três dias, buscando sabedoria. Quase desmaiei no aeroporto de Lisboa. Não importava. Ambos obtivemos nossa resposta, e essa resposta foi não. Não tínhamos um "por que". Nós apenas sabíamos.

Semanas depois, Ashley quis me ajudar e me inscreveu em um aplicativo de namoro popular. Foi lá, no final de agosto, quase um ano depois de nosso encontro com Victor no cemitério, que vi Billy pela primeira vez.

Em uma foto, ele posou com uma roupa de karatê muito pequena de sua infância. Havia rugas de riso em suas têmporas, e cabelos de seda louro-escuro. Em outra, havia um bode peludo empoleirado atrás de seus ombros largos enquanto ele se debruçava sobre um tapete de ioga. A última foto foi a minha favorita. Ele estava parado, com o quadril inclinado, apertando os olhos para a câmera com um sorriso malicioso, em frente à pirâmide de vidro do Louvre, em Paris.

É esse, disse a minha intuição.

Billy me beijou no primeiro encontro. Ele era o mais velho de três meninos barulhentos. Escoteiro. Palhaço da turma. Ele não ia à igreja desde a faculdade.

No nosso terceiro encontro, tentei terminar com ele, mas algo me impediu. Em nosso quarto encontro, ele me disse que me amava.

"O que isso significa para você?" Eu perguntei. Mas dentro de alguns meses eu me vi retribuindo o sentimento.

Ele voltou para a igreja comigo, segurando minha mão durante todo o culto. No aniversário dele, comprei um projetor de estrelas. Nós nos deitamos no chão do quarto dele sob os céus artificiais, conversando sobre nossas convicções e dúvidas. Fizemos a brincadeira de descobrir o sabor do biscoito Oreo de olhos vendados e experimentamos a pintura acrílica.

Por que Billy, o charmoso renegado e filho pródigo, o homem sem o qual eu não poderia viver, era mais importante do que Micah? Se eu começar a mergulhar nas explicações, as possibilidades se espalham e se multiplicam. Minha devoção é falível, humana, sujeita a uma série de preferências e caprichos. O importante agora é que eu amo Billy, eu escolhi Billy, e vou escolhê-lo diariamente até que meus dias se esgotem nesta vida. Nós nos casamos em fevereiro passado, dois anos e meio depois de nos conhecermos.

Lamento dizer que Victor Noir ainda não trouxe ninguém para Ashley. Às vezes, quando ela lamenta mais um pretendente medíocre, ameaçamos voltar para Paris e bater na protuberância de Victor. O que francamente não causaria nada - é bronze sólido. Mas, por mais engraçada e fantasiosa que tenha sido nossa experiência naquele dia, duvido que a protuberância também tenha feito alguma coisa por nós. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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