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Mães brasileiras estão entre as que mais se sentem julgadas

Maternidade é mais criticada no Brasil do que em países como Índia ou Arábia Saudita, revela Ipsos

26 mai 2021 - 05h10
(atualizado às 07h48)
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O medo do julgamento alheio é um dos principais temores daqueles que vivem em sociedade. Para as mulheres que são mães, a sensação de serem julgadas o tempo inteiro incomoda 46,3% das brasileiras. Isso é o que revela uma pesquisa feita pela Ipsos no Brasil e em 27 países. Foram realizadas 23 mil entrevistas entre 23 de dezembro de 2020 e 8 de janeiro de 2021. Porém, não é preciso um levantamento para detectar isso. Basta reparar 'por quem' as pessoas perguntam quando uma criança se perde no parquinho ou no shopping, por exemplo. Ou, em casos de delitos de grande repercussão, não é raro ouvir quem questione se a mãe do infrator "não se sente culpada" pelo erro do filho.

Maternidade traz sentimento de culpa
Maternidade traz sentimento de culpa
Foto: Pixabay

"As mulheres são julgadas o tempo todo e não apenas só quando os filhos 'se jogam no chão' - sendo que esse é um comportamento normal e até esperado das crianças, que muitas vezes não sabem lidar com a frustração porque são imaturas emocionalmente. Elas são julgadas no modo que vestem os filhos, como os alimentam - se o filho está acima do peso, adivinhe? A culpa é da mãe que não cuida da saúde do pequeno", aponta Rita Lisauskas, autora do livro Mãe sem Manual. A jornalista, que é mãe de Samuca, ressalta que as mulheres são criticadas independente da situação: "São julgadas se trabalham demais (não dão atenção ao filho) ou se trabalham de menos (mima demais, fica junto tempo demais, deixa 'mal-acostumado'). Como a cultura ocidental idealiza demais esse papel da 'mãe', como fixa esse lugar como sendo de comportamentos únicos e padronizados, qualquer coisa que saia desse papel é julgada. Como somos todas diferentes e múltiplas, é difícil se encaixar nesse papel".

A doula Tatiana Fávaro, mãe de Helena, de 5 anos, e Francisco, de 3, acredita que, para o além do julgamento explícito, a crítica velada, aquela que está entranhada na estrutura social, aparece em forma de angústia, de culpa materna. "Nos grupos de mães, nas rodas de conversa, agora virtuais, no contato com mulheres da gestação ao pós-parto, é quase unânime a sensação de insuficiência, de estar sempre "devendo", sabe? E isso não é julgamento explícito, isso é a estrutura patriarcal falando baixinho no nosso ouvido em forma de maternidade compulsória, do mito do amor materno imediato e incondicional, dos três - ou mais - turnos que as mulheres assumem entre trabalho, crias e a casa. É a divisão de tarefas injusta, é a madrasta estereotipada, é a mãe solo cobrada até a tampa, é a competitividade entre mulheres incentivada, são as figuras da guerreira e da heroína que vão fazer de tudo pra ganhar esses 'pseudotroféus', enquanto são distraídas do peso que estão carregando, injustamente".

Diante da multiplicidade de angústias, Tatiana idealizou a rede ativista consciente Criar Filhos. Mesmo cuidando e compartilhando o desenvolvimento dos filhos, homens e mulheres têm percepções diferentes quando o assunto é julgamento. Ainda segundo o estudo da Ipsos, no comparativo com as respostas de pais, há uma diferença de mais de 10 pontos porcentuais: 35,9% dos respondentes do sexo masculino disseram se sentir julgados frequentemente contra 46,3% das mães. "A ideia de que o cuidado com os filhos é algo que cabe mais à mãe do que ao pai é algo que está introjetado na nossa sociedade, então eu acredito que seja por isso que as mulheres se sentem mais julgadas ou se culpam quando o filho 'não se comporta bem', por exemplo. Se a criança está fazendo algo que a sociedade julga como 'negativo' e que pode ser entendido como tal, 'a culpa é da mãe', ou seja, dessas mulheres. Eu acredito que os homens se sentem menos culpados por proibir os filhos de fazer algo, por exemplo, porque esse papel de dizer 'não' também acaba sendo mais nosso do que deles", avalia Rita Lisauskas.

Entre os principais tópicos da pesquisa pelos quais se sentem julgadas, as mães citam: o comportamento do filho (49,7%), o que deixam ou proíbem de fazer (47,6%) e a forma como controlam os comportamentos da criança (36,4%). As brasileiras estão entre as que mais se sentem frequentemente criticadas no mundo, atrás apenas das indianas (60,6%), das sauditas (49,4%) e das australianas (48,5%).

"Eu costumo dizer que a gente é uma das gerações de transição. Temos muita informação disponível e a oportunidade de ir desconstruindo esses estereótipos e estruturas de preconceito sorrateiras, invisíveis e cruéis. Para isso, um passo importante na minha opinião é o reconhecimento. Perceber em nós o machismo. Produzindo e divulgando conteúdo que questiona essas estruturas numa rede ativista de criação consciente", enfatiza Tatiana Fávaro, do grupo Criar Filhos. Para ela, o preconceito sustenta o julgamento na maternidade. "Vejo que as mulheres que vão tomando essa consciência muitas vezes convidam outras a pensar, pelas crianças, nessas atitudes que ainda temos e que reforçam tudo o que o patriarcado precisa para se manter operante: mulheres com uma autocrítica arrebatadora e zero autocompaixão. Terreno mais que fértil para um julgamento, explícito ou velado, causar estrago. Por qual motivo o outro se acha no direito de dizer isso sobre meu maternar?".

Na visão de Rita Lisauskas, a mulher só será menos julgada na maternidade se houver uma mudança social. "Quando você vive em um País onde a licença maternidade é de quatro a seis meses e a paternidade de apenas 5 a 20 dias, os papéis de cuidado dessa criança acabam demarcados a ferro e fogo na nossa pele. Quando se entender que não só a mãe - mas o pai, os avós, os tios, os padrinhos - também são responsáveis pelo cuidado com uma criança, o peso sairá das nossas costas e, junto com eles, os olhos que perscrutam todos os nossos passos", conclui. Para Tatiana Fávaro, a transformação deve, essencialmente, envolver as mulheres: "A gente precisa reconhecer na gente o que nos leva a esse autojulgamento. Penso que as nossas crianças de hoje ainda terão muito trabalho, mas acreditar nesse mundo de equidade e empatia - mesmo nos dias de hoje, no País em que vivemos - é o que me faz acordar todos os dias e seguir em frente".

Estadão
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