Livro infantil denunciado por racismo é retirado de programa federal para distribuição em escolas públicas
‘Formiga Amiga’, inscrito no PNLD e aprovado pelo MEC, foi criticado por editores que apontaram o conteúdo como racista e estereotipado
Após ser denunciado por editores, o livro infantil Formiga Amiga – em que a personagem principal é associada a uma mulher negra, chega a ser ilustrada com chifres vermelhos e chamada de “negrinha” e “capeta” em uma das páginas – foi retirado do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do governo federal.
Em janeiro, o Terra expôs a situação. Após o caso viralizar e ter sido protocoladas denúncias no governo federal com relação à obra, a Gaudi Editorial, editora do Grupo Editorial Global, afirmou ter retirado o livro do PNLD 2023 e de circulação no mesmo dia em que recebeu as queixas. Conforme apurado pela reportagem, o livro seguia -- e segue -- disponível para venda em lojas online.
Além disso, na época, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC) que toca o programa, disse não ter tido conhecimento dessa solicitação de retirada do livro do programa. Até então, o Formiga Amiga havia sido aprovado na avaliação pedagógica do MEC.
A confirmação da exclusão do livro no programa aconteceu apenas neste mês de junho, quando foi aberta a etapa de registro de escolha das escolas para as obras disponíveis no sistema. Inicialmente, o livro apareceu na listagem. Mas, após ser questionado, o FNDE afirmou se tratar de um erro no sistema e retirou a obra.
Conforme a autarquia explicou à reportagem, o livro foi reprovado na fase de análise de atributos, etapa anterior à escolha pelas redes de ensino. Isso aconteceu porque a editora responsável pela obra não respondeu a todas as solicitações necessárias para seguir no processo.
“Cabe destacar que a editora teve conhecimento de manifestações críticas em relação à obra, incluindo denúncias relacionadas ao conteúdo considerado inadequado. A não continuidade no processo, portanto, pode ser compreendida também como uma decisão editorial diante do cenário apresentado”, pontuou o FNDE.
“O FNDE reforça seu compromisso com a qualidade e a responsabilidade na seleção das obras disponibilizadas no âmbito do PNLD, assegurando o respeito aos princípios pedagógicos, à diversidade e aos direitos das crianças e adolescentes”, complementou a autarquia.
O Terra tentou contato com a Gaudi Editorial, do Grupo Editorial Global, em busca de um novo posicionamento sobre a questão, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto e será atualizado em caso de retorno.
"Ficamos muito orgulhosos de termos impedido que um livro como esse pudesse ter chegado às mãos das crianças da escola pública", afirmou Rosana Martinelli, representante da Editora Quatro Cantos e que faz parte do movimento intitulado ‘Livro Livre’, onde editores se uniram para denunciar formalmente a obra.
Relembre o caso
A questão veio à tona quando o professor Gabas Machado, da rede municipal de ensino de Salvador, na Bahia, teve acesso ao Formiga Amiga em uma escola onde atua. Quando um livro é submetido ao PNLD, as escolas escolhem as obras que querem receber. Segundo a editora, o livro que chegou até a escola de Gabas foi um dos cerca de 400 exemplares distribuídos a professores pela editora como forma de promover o material.
“Quando eu vi a capa já achei estranho. Nós temos discutido muito dentro da perspectiva dos movimentos de literatura negra e africana no Brasil essa constante zoomorfização dos corpos negros na literatura, e sempre de forma extremamente estereotipada. E quando eu peguei a capa do livro, já vi que tinha sido buscado construir a imagem de uma pessoa negra. Os traços, o diastema nos dentes, tudo isso a formiga traz”, comentou o professor ao Terra, em janeiro.
O que mais o chocou foi ver a página que fala de “capeta”: “Dulce é preta. Negrinha igual rapadura. E como um capeta passa por toda greta”.
No material digital de apoio ao professor da editora Global, referente a essa página do livro, estão descritos exemplos de questionamentos que podem ser feitos aos alunos: "Por que ela é comparada a um 'capeta'? O que mostra a ilustração da página em relação a essa comparação: como Dulce está vestida? Que cores foram usadas? Essa comparação é no bom sentido?".
Gabas trabalha há cerca de 15 anos com projetos de educação afrocentrada e antirracista, atuando com literatura negra e contracolonial. Ao terminar a leitura, publicou um vídeo denunciando a questão: “Quem já foi chamado de formiga, de cabelo de formiga, vai entender”. E o vídeo chegou até a editora Global.
Em resposta a ele, em dezembro passado, a equipe da Global informou que a obra busca “valorizar aspectos positivos da personagem Dulce, a formiga amiga”, e complementa que “inclusive, a associação com elementos como o turbante e faixas foi fruto de ampla pesquisa, com o objetivo de reforçar a força e a beleza desses elementos ao ornamentar uma personagem que, ao mesmo tempo, é graciosa, delicada e forte”.
A Global disse reconhecer que “houve uma falha no tratamento dado”. “Compreendemos que, em um aspecto mais macro e contextualizado em um ambiente que, infelizmente, ainda é racista como é a sociedade brasileira, a representação feita na edição permite extrapolações que, de modo algum, eram nosso desejo. Gostaríamos de enfatizar que a intenção era enaltecer e valorizar e, de forma alguma, promover estereótipos ou preconceitos”. Não houve retratação pública, como solicitado pelo professor na troca de mensagem.
No posicionamento sobre o livro enviado ao Terra, também em janeiro, a editora não citou esses aspectos em sua resposta. Mas se colocou como uma “casa editorial inclusiva e plural” com o objetivo de “oferecer um tratamento respeitoso, humano e alinhado ao combate a preconceitos em todas as publicações”. A tiragem de 3 mil exemplares desse livro, segundo a Global, estava em processo de descarte.