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Fogo queimou conhecimento que ainda nem havia sido obtido

Cada peça destruída no incêndio do Museu Nacional poderia contar uma nova história conforme as técnicas de análise avançassem

3 set 2018 - 15h08
(atualizado em 4/9/2018 às 12h43)
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A televisão de uma pizzaria do Rio de Janeiro mostrou as chamas consumindo o Museu Nacional e deixou Paulo Büll em pânico. “Eu trabalho lá”, disse, plantado em frente ao aparelho. É muito provável que sua pesquisa de doutorado tenha sido destruída pelo fogo.

“A base do trabalho estava no museu”, contou ao Terra. Ele estuda os impactos socioambientais da usina hidrelétrica de Belo Monte sobre os grupos indígenas do Rio Xingu. “Tem muita documentação histórica sobre isso que foi perdida”.

Os bombeiros e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pelo museu, estão apenas começando a entrar nos restos do prédio e avaliar o que sobrou do acervo. Não há previsão oficial para o tempo que esse trabalho vai tomar.

Bombeiro joga água sobre o Museu Nacional incendiado
Bombeiro joga água sobre o Museu Nacional incendiado
Foto: Marcello Dias / Futura Press

A impressão, entre professores, é de que serão necessárias semanas. O que foi destruído deixou de existir sem contar o que podia sobre a história do mundo.

As estrelas do museu, como o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil, e a sala dos dinossauros, são o que tem chamado mais a atenção. Havia, porém, material desconhecido do público, não estudado ou pouco estudado. Mesmo peças sobre as quais vários cientistas já se debruçaram poderiam fornecer novas respostas.

“Na área da ciência, as técnicas avançam. Hoje, por exemplo, há uma nova técnica para extrair DNA de esqueletos que não existia 10 anos atrás e que está revolucionando o conhecimento sobre a dispersão dos hominídeos pelo globo”, explica o professor Carlos Fausto, que fazia pesquisas no museu.

Caminhão dos bombeiros apoia combate às chamas no Museu Nacional
Caminhão dos bombeiros apoia combate às chamas no Museu Nacional
Foto: Betinho Casas Novas / Futura Press

“Peças que já foram estudadas, com novas técnicas poderiam ser reestudadas”, diz. É por isso que os objetos de pesquisa são preservados após analisados.

O que é exposto no museu causa mais comoção, mas é, numericamente, uma fração mínima do que ele tinha. A reserva técnica guardava a maior parte do acervo – e também foi queimada.

“Tinha uma coleção de plumária do povo Mundurucu, de lá do Tapajós, que era do século XIX. É uma plumária famosa porque aparece em várias gravuras de viajantes da época, foi presenteada a D. Pedro II”, lamenta o professor Fausto pela provável incineração do item.

Aflição e solidariedade

No fim da manhã desta segunda-feira (3), vários pesquisadores do Rio de Janeiro estavam em frente ao Museu Nacional, desorientados.

“A gente ainda não tem informações sobre o que sobrou”, conta a paleontóloga Marina Bento Soares. “Vi resgatarem três vasos de cerâmica grandes”.

De acordo com a cientista, os pesquisadores, funcionários e professores estão em uma situação “totalmente aflitiva”. “O que a gente vê, olhando para a frente do museu, é uma carcaça, só parede, e lá dentro tudo preto”. Segundo ela, várias pessoas querem entrar nos escombros para tentar salvar algo, e são impedidas pelos bombeiros.

Ela disse ao Terra que sabe de duas pesquisadoras sem ligação direta com o Museu Nacional e com o Rio de Janeiro que estão viajando de Pernambuco e São Paulo para prestar solidariedade.

Além do motivo profissional, a palentóloga tem uma razão pessoal para ter se deslocado de Porto Alegre: é casada com o diretor do museu, Alexander Kellner. Ele também estava na capital gaúcha, e embarcou para o Rio no começo da noite de domingo sem saber do incêndio.

Soares é ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e mesmo assim perdeu parte de pesquisa na tragédia. “Nós tínhamos material nosso emprestado ao museu, que acho que não existe mais.”

Era um fóssil. Inicialmente, achava-se ser de um pterossauro. Após novas análises, porém, foram encontrados indícios de que seria um réptil antecessor desses animais.

“Estava sendo reestudado, tomografado, várias coisas estavam sendo feitas para a gente publicar um artigo com a reinterpretação do fóssil.” Caso tenha sido destruído, a probabilidade de ser encontrado outro nas mesmas condições é praticamente nula. “Era único, o único que a gente achou com essa característica. Tem 200 milhões de anos”, conta a paleontóloga.

Segundo ela, “certamente tinha” no acervo do museu material não estudado. A falta de recursos para a ciência no Brasil, além de promover tragédias como a acontecida no Rio de Janeiro, faz com que os estudos andem mais devagar. Sem dinheiro, não há braços suficientes para analisar tudo o que é encontrado.

Em 2016, cientistas descobriram que fósseis encontrados décadas antes eram restos do maior dinossauro brasileiro conhecido. O material ficou armazenado no Museu de Ciências da Terra, também no Rio. Algum dos 20 milhões de itens do Museu Nacional pode ter informações desse calibre e, muito possivelmente, foi destruído.

Problemas do presente

Além do dano histórico, a destruição do Museu Nacional também é potencialmente prejudicial para discussões importantes da política brasileira.

O professor Carlos Fausto explica que quem pesquisa populações indígenas comumente se torna ator político. “Você é sempre chamado depois como especialista para opinar em determinados processos judiciais.”

Ainda não se sabe como o ano vai continuar no Museu Nacional. “A gente não tem mais sala, a gente não tem mais porta, a gente não tem mais janela. No nosso caso, a gente continua tendo alunos”, explica Fausto.

A UFRJ tentará manter a rotina de aulas em diferentes lugares. “Por enquanto está tudo muito nebuloso. Está todo mundo aqui em frente ao Museu olhando”, resumiu Fausto ao Terra no fim da manhã desta segunda-feira.

De acordo a assessoria da UFRJ, no local trabalhavam 89 professores e 215 servidores técnicos. Eram atendidos 500 alunos de pós-graduação, que também pesquisam.

A quantidade de pesquisas é imensurável. As áreas estudadas ali eram antropologia social, arqueologia, zoologia, botânica, linguística e geologia do quaternário.

O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira, afirma que esse é o momento de "pensar até no longo prazo na construção de um museu de história natural condizente com a diversidade que o Brasil tem".

Segundo ele, o incêndio "atesta que estamos cuidando muito mal do nosso patrimônio científico". Perguntado se, após esse episódio, instituições internacionais podem pensar duas vezes antes de emprestar material para museus brasileiros, disse que pode acontecer, apesar das manifestações de solidariedade recebidas. "Mas eles também deveriam devolver parte de nosso patrimônio que está lá, seria louvável se pudessem fazer esse tipo de movimento".

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Fonte: Redação Terra
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