Cultura usa novas regras de fiscalização para livrar empresa suspeita de fraudes na Lei Rouanet
Defesa da Parnaxx alega que atraso na análise de projetos gera insegurança jurídica e afirma estar à disposição das autoridades; o Ministério da Cultura não se manifestou sobre o caso
BRASÍLIA - Um parecer do Ministério da Cultura, do mês passado, reconhece que expirou o prazo para a pasta analisar as prestações de contas de uma empresa suspeita de fraudes na aplicação de uma parte de R$ 39,8 milhões recebidos por meio da Lei Rouanet.
O documento, anexado a um processo na Justiça, usa como referência os novos critérios criados pelo ministério de Margareth Menezes para fiscalizar gastos de projetos culturais. A empresa também citou as novas regras para pedir o fim de processos.
Como revelou o Estadão, duas instruções normativas sobre prestação de contas de projetos culturais, criadas em 2024 e 2025, foram consideradas por auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) um afrouxamento do controle dos gastos culturais.
A Parnaxx, empresa do Paraná, recebeu recursos públicos para realizar grandes festivais, shows e musicais, como Festival de Teatro de Curitiba, Risorama, Mish Mash e programações natalinas.
A defesa afirmou ao Estadão que a empresa nunca se esquivou de prestar informações e contas, mas que ela não pode ficar à mercê da incerteza sobre suas obrigações. Disse ainda que os devidos esclarecimentos serão feitos durante o transcorrer das investigações em andamento (leia mais abaixo). O Ministério da Cultura não quis se manifestar.
Ao todo, a firma já captou cerca de R$ 66 milhões com leis de incentivo por meio de pelo menos 37 projetos. Destes, 16 estão com prestações de contas em andamento e somam R$ 39,8 milhões, liberados entre 2011 e 2024.
A empresa foi à Justiça alegando que dez dos 16 projetos já deviam ter as prestações de contas declaradas prescritas, e portanto automaticamente aprovadas. O objetivo da ação judicial é eliminar a "insegurança jurídica" deixada por possíveis sanções futuras em casos que já deveriam ter sido encerrados.
A utilização dos recursos federais pela Parnaxx é objeto de investigações federais por suspeitas de desvios e fraudes. Um inquérito da Polícia Federal aponta "inexistência de elementos de desvio intencional de recursos", mas o Ministério Público Federal (MPF) insiste pela continuidade das apurações.
A reportagem não teve acesso ao inquérito, mas obteve um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) que aponta irregularidades na utilização de verbas de projetos que a Parnaxx quer que tenham prestações de contas declaradas prescritas.
Irregularidades apontadas pela CGU
Foi uma auditoria preliminar da CGU que levou à abertura de investigação policial e a uma série de recomendações ao Ministério da Cultura para aprimoramento do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei Rouanet.
Entre as irregularidades apontadas pela Controladoria estão:
- Notas fiscais inválidas: Identificação de R$ 981 mil em documentos fiscais sem validade legal;
- Duplicidade: Casos em que a mesma nota fiscal foi utilizada para justificar gastos em projetos diferentes;
- Serviços não prestados: Notas emitidas por fornecedores que admitiram, por escrito, não terem realizado os serviços cobrados;
- Autopagamento: Registro de pagamentos em cheque nos quais a Parnaxx figurava simultaneamente como emissora e destinatária dos valores;
- Acessibilidade e contrapartidas: Distribuição de ingressos gratuitos abaixo do volume exigido e descontos indevidos para clientes de uma patrocinadora específica;
- Contorno de vedações: Suspeitas de uso de empresas do mesmo grupo econômico para driblar proibições legais.
O órgão de controle orientou o Ministério da Cultura a rejeitar integralmente despesas baseadas em notas inválidas e até inabilitar responsáveis pela Parnaxx.
Ao apresentar seus argumentos ao Judiciário e pedir o reconhecimento das prescrições, a Parnaxx usou a instrução normativa de 2025, criticada pelo TCU, como pilar de sua manifestação e retirou dela bases para questionar prazos de análise não cumpridos, vencimento do período obrigatório para guardar documentos e a obrigatoriedade do reconhecimento da prescrição pelo ministério.
"A própria Instrução Normativa n. 23/2025/MinC dá o prazo de seis meses para a análise dos documentos e aplicação de sanção. Por se tratar de análise simples de cumprimento de objeto e de prestação de contas, nada justifica uma demora mais de dez vezes superior ao prazo previsto na Instrução Normativa", diz um trecho da petição.
A Subsecretaria de Gestão de Prestação e Tomadas de Contas (SGPTC), do Ministério da Cultura, foi acionada para emitir um parecer que pudesse orientar a defesa a ser apresentada pela União no processo. E para isso elaborou uma nota técnica, em 19 de novembro.
O documento cita as duas instruções normativas questionadas pelo TCU como parte de um "marco de modernização da gestão cultural" e dá razão parcial à Parnaxx. A nota técnica reconhece que processos estão paralisados há mais de uma década, alega que manter o caso aberto por anos por falhas formais fere o princípio da eficiência.
"Tais situações geram desconforto institucional e denotam insegurança técnico-jurídica, tanto para os agentes públicos quanto para os parceiros privados", diz o parecer. "A movimentação da máquina pública para analisar o mérito de processos com fortes indícios de prescrição configura em esforço processual que incide sobre pretensões sancionatórias potencialmente extintas."
O documento salienta também que a Polícia Federal não detectou "desvios intencionais", o que eliminaria a chance de os processos serem imprescritíveis por dano ao erário.
"A perpetuação de um passivo administrativo à espera de um desfecho penal incerto e sem prazo determinado afrontaria o princípio da eficiência, configurando omissão estatal. Portanto, a medida juridicamente adequada é o reconhecimento imediato da prescrição", frisa.
Divergência sobre dolo
A necessidade de comprovação de dolo é outro ponto do novo conjunto de regras do Ministério da Cultura criticado pelo TCU por entender que isso contraria jurisprudência da Corte. Até então, bastava comprovar a "culpa" (negligência ou erro grave) para punição. Ao exigir prova de intenção deliberada de fraudar, o ministério tornou a punição quase impossível.
"A IN MinC 23/2025 inovou e aboliu a hipótese de responsabilização subjetiva, nos casos de conduta culposa, em afronta direta à jurisprudência do Tribunal e aos princípios da responsabilidade civil e da reparação do dano, bem como sem observar as situações de erro grosseiro", dizia o relatório técnico do TCU.
A ausência de dolo é um dos pontos alegados no parecer da pasta no caso Parnaxx para que as prestações de contas sejam prescritas.
"A decisão administrativa deve pautar-se na realidade fática atual, ou seja: a Polícia Federal, munida de instrumental probatório exauriente (quebras de sigilo), atestou a inexistência de elementos de dolo ou desvio. Sobremaneira que é verdade que manter processos administrativos suspensos ad aeternum, aguardando uma eventual e incerta responsabilização penal, afrontaria a segurança jurídica. Não é por acaso que o arcabouço técnico e normativo em vigor compreende que a solução que concilia o interesse público e a legalidade é o arquivamento", complementa.
O parecer só não é totalmente favorável à empresa porque alerta para a possibilidade de medidas tomadas no âmbito da CGU ou do TCU terem resetado prazos prescricionais. "A robustez da tese de prescrição depende da confirmação de que não houve marcos interruptivos gerados por esses órgãos externos", pontua.
O caso tramita na 6ª Vara Federal de Curitiba. No último dia 9, o pedido de liminar foi negado pela juíza federal Alessandra Anginski.
Outro lado
Ao Estadão, o advogado da Parnaxx, Fernando Muniz, afirmou que não é razoável que prestações de contas de anos atrás estejam pendentes de análise e ofereçam insegurança jurídica para produtores culturais.
"Com o mandado de segurança estamos exercendo nosso direito de defesa. A União, por uma série de razões, não cumpriu com seu papel de concluir as análises das prestações de contas no tempo correto. O administrado não pode ficar à mercê da incerteza, da insegurança com relação ao cumprimento de suas obrigações perante órgãos públicos", disse.
Ele frisou que a Parnaxx segue produzindo espetáculos em parceria com poderes públicos e disposta a prestar todos os esclarecimentos.
"Estamos falando de setor de cultura, que é muito informal, tem processos precários, aspectos acabam sendo deixados de lado em prol da produção. Diligências, investigações e auditorias, tudo isso é praxe no universo da destinação de recursos públicos", comentou.