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Médico relata rejeição a curados do ebola: "é um fantasma"

Infectologista brasileiro passou um mês na Libéria como voluntário para trabalhar no controle da doença e contou ser ainda precário o tratamento aos doentes pela falta de estrutura dos hospitais

2 fev 2015 - 10h17
(atualizado em 3/2/2015 às 15h02)
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<p>Jessé trabalhou na criação de diretrizes para ajudar no controle da doença.</p>
Jessé trabalhou na criação de diretrizes para ajudar no controle da doença.
Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação

Tudo indica que o surto de ebola que assustou o mundo em 2014 está controlado. Mas o vírus continuará por aí, longe de ser erradicado. É sabido que ele ainda causa e causará muitas mortes e sofrimento, principalmente em países africanos, onde segue a luta contra o doença.

O médico infectologista brasileiro Jessé Alves, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, conhece essa luta como ninguém. Ele foi voluntário no combate ao ebola em um dos países afetados pela doença, a Libéria. Lá, só em 2014 foram registrados 8.115 casos da doença e 3.471 mortes. No último dia 24, o governo local anunciou que restavam apenas cinco casos confirmados.

Após passar em seleção feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no final de outubro do ano passado, Jessé embarcou para um período de quatro semanas no país africano. Em entrevista ao Terra, o médico contou como foi seu trabalho, das condições ainda precárias de tratamento e sobre outro desafio a ser superado nos países com casos do vírus: o preconceito com quem se curou da doença.

“As pessoas na família rejeitam e, em muitos casos, os sobrevivente perdem seus empregos”, relatou. Durante a conversa, Alves lembrou do caso de um homem infectado que perdeu a mulher e as duas filhas para o ebola, se curou, mas foi rejeitado e acusado em sua vila de ter espalhado o vírus. Confira.

O que fez você ir para a Libéria? Foram alguns fatores. O primeiro deles é que esse é o meu trabalho e minha especialidade. Sou um infectologista trabalhando num hospital de doenças infecciosas em São Paulo, que, aliás, é um hospital de referência e, se surgir um caso suspeito na cidade, deve ser o destino do doente. 

Pensei: qual experiência realmente tenho com a doença? Nenhuma. Ninguém nunca tinha visto um caso. Então isso pesou também - eu queira ver de perto, aprender e realmente ter uma vivência in loco.

Outra questão era que eu estava um pouco insatisfeito com a resposta internacional à epidemia da doença. O que a comunidade internacional fazia para ajudar os pacientes? Por que a mortalidade ainda era tão alta? Isso me incomodava. Achava que não estava se fazendo o suficiente. Então caiu a ficha: eu também sou a comunidade internacional. Por que eu não posso fazer alguma coisa?

<p>Foram construídos hospitais específicos para combater a disseminação do vírus.</p>
Foram construídos hospitais específicos para combater a disseminação do vírus.
Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação

O que você achava que não estava sendo suficiente no esforço internacional? Na época meu incômodo era com a alta mortalidade. É claro que a gente sabe que a doença é muito grave, mas a gente via relatos de que o cuidado específico com o paciente era muito básico.

Era, fundamentalmente, um tratamento para diminuir o sofrimento da pessoa, mas não havia muito que se podia fazer em termos de suporte mais avançado. Os hospitais são muito básicos. E, na verdade, estando lá, a gente entende um pouco o motivo disso. Os serviços de saúde são, pelo menos no país que eu fui, muito básicos.

Tudo estava em fase de recuperação depois da longa guerra civil que eles viveram (1989 - 2003 e 1996 - 1999). A estrutura de saúde está sendo reestabelecida. E quando começou a epidemia, os hospitais basicamente fecharam. Ninguém ia para os hospitais porque havia o risco de se infectar nos serviços de saúde.

Vários profissionais de saúde se infectaram. Só na Libéria foram mais de 350 profissionais infectados. E a preocupação inicial das organizações internacionais era conter a disseminação da doença. Nesse sentido, as construções dos hospitais específicos para o atendimento do ebola eram mais para conter a disseminação da doença na comunidade. E se fazia isso tirando o indivíduo doente do convívio para que ele não infectasse mais ninguém.

Assim, o cuidado com o doente acabou em segundo plano. Não tinha hospital com UTIs (Unidades de Terapia Intensivas), como a gente tem aqui, com capacidade de realmente fornecer um prognóstico melhor. Basicamente as pessoas são hidratadas, recebem os antibióticos empíricos, mas não tem como colher exame ou fazer uma avaliação mais abrangente do estado de saúde de cada pessoa.

Existem tratamentos experimentais na Libéria, como os usados por americanos infectados? Não. Lá, o tratamento, fundamentalmente, é um tratamento de suporte. E a gente não tem, ainda, como saber se esses tratamentos experimentais foram decisivos ou não para a melhora dos pacientes que os receberam. Eles foram usados em pouca gente e não sabemos dizer se a melhora foi efeito do tratamento experimental ou só de um suporte geral melhor.

Qual foi o seu trabalho na Libéria? Participei de um grupo de controle de infecção. Esse grupo tem a função de definir toda a normatização de cuidados em relação ao controle de infecção dentro das unidades de saúde. Era muito específico para o ebola. Então definia, por exemplo, o uso dos equipamentos de proteção, as rotinas de limpeza, as rotinas de cuidados com os pacientes no que diz respeito à transmissão da doença. Isso tanto em nível hospitalar quanto em nível comunitário. Então a função era criar todas essa diretrizes para ajudar no controle e reduzir a transmissão da doença. A minha tarefa específica era mais monitorar os centros de tratamento de ebola. Então eu fazia meio que uma auditoria nesses centros pra ver e avaliar as práticas no controle de infecção. 

<p>Os profissionais de saúde na Libéria são muito "empenhados, dedicados e comprometidos", relata Jessé.</p>
Os profissionais de saúde na Libéria são muito "empenhados, dedicados e comprometidos", relata Jessé.
Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação

E os profissionais da Libéria? Como está o treinamento deles? A OMS (Organização Mundial de Saúde) tem participado muito e promovido muitos treinamentos. É contínuo. Sempre tem turma sendo treinada em todos os níveis. Desde profissionais que vão trabalhar lá em contato com os pacientes a pessoas que vão ficar diretamente responsáveis pelo controle de infecção. O treinamento é contínuo e isso é bem positivo. As pessoas são muito empenhadas, dedicadas, comprometidas. Os profissionais da Libéria vão garantir o controle e o futuro controle de possíveis epidemias. Mas uma coisa que é bem bacana de se ver é o nível de conhecimento e dedicação dos profissionais de lá.

Existe preconceito por parte da população com os infectados? No início, foi muito difícil. As pessoas não compreendiam, não acreditavam que a doença era do jeito que ela é. Houve muita disseminação da doença exatamente por não aderência a nenhuma prática de segurança.

Então havia muitos casos de pessoas vivendo na mesma casa dos doentes e cuidando desses doentes sem os cuidados devidos, por exemplo. As práticas de funerais são práticas que levam a risco de contaminação, as pessoas se expõem muito durante a preparação do cadáver.

Então todos esses hábitos culturais precisaram ser modificados muito rapidamente para diminuir a contaminação. E eu acho que a adesão foi imensa. No país inteiro, o que mais se vê são baldes com hipoclorito, uma substância muito barata que combate o vírus. É fácil todo mundo ter sua solução de hipoclorito para lavar as mãos.

Mas tem discriminação também, não tem? O que existe, e que está sendo trabalhado para melhorar, é a discriminação contra os sobreviventes do ebola. A pessoa que sai de alta de um centro de tratamento às vezes não volta para casa, mesmo estando bem.

As pessoas na família rejeitam, as pessoas perdem seus empregos. Há bastante relato desse tipo de situação. Então a doença continua sendo um problema mesmo depois que a pessoa está curada. É um fantasma que a acompanha por algum tempo.

Existem associações de sobreviventes que tentam garantir os direitos do sobrevivente e apresentar esses sobrevivente como pessoas produtivas e normais. Ninguém fica com nenhuma sequela grave da doença - não existe razão para impedir um sobrervivente de trabalhar, por exemplo. Mas com o controle do vírus, isso estão melhorando. 

Você lembra de algum caso específico? Teve o caso de um homem que sobreviveu, mas perdeu quatro filhos e a esposa para a doença. A aldeia onde ele morava estava com 30 casos. O filho do sobrevivente foi o primeiro caso e o pai demorou um pouco para aceitar e procurar tratamento. Então as pessoas da aldeia o culparam por ter trazido a doença e por ela ter se espalhado na aldeia. Tentaram botar fogo na casa dele e o expulsaram de lá, disseram que não poderia voltar. Não sei do desfecho desse caso, mas seui ele queria voltar para a aldeia e estava tendo dificuldade.

Como é o exame que detecta se a pessoa se curou? Se faz um exame chamado PCR, que detecta o material genético do vírus. Quando o infectado começa a melhorar, a gente repete esse mesmo exame. Se der negativo, esperamos dois ou três dias e fazemos o mesmo teste mais uma vez para confirmar. Se der negativo novamente, a pessoa está de alta.

Então ela não vai mais transmitir a doença, embora exista o conhecimento de que o vírus possa, por exemplo, permanecer no esperma por até três meses depois da cura. Então há restrições. A pessoa não pode ter relação sexual sem proteção, por exemplo.

Mas, tirando isso, a pessoa não vai mais transmitir a doença. Pelo contrário, o sobrevivente pode até contribuir, porque passa a estar mais protegido e, com isso, ele pode trabalhar com pacientes. Existe um programa para trazer profissionais de saúde que se infectaram de volta deles ao trabalho. Alguns também podem cuidar de órfãos de pais que tiveram ebola. Quem foi exposto ao vírus pode ficar até 21 dias sem manifestar sintomas. Nesse período, as crianças precisam de cuidados. Há várias frentes de atuação dessas pessoas. 

Fonte: Terra
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