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Lava Jato vai do 'auge' a derrotas em série nos 580 dias de prisão de Lula

Quando Lula foi preso, em abril de 2018, operação ganhava série na Netflix e era quase unânime entre a população; 580 dias depois, acumula derrotas na política e no Judiciário.

11 nov 2019 - 07h41
(atualizado às 08h16)
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Lula foi solto na sexta-feira após 580 dias preso na Polícia Federal em Curitiba
Lula foi solto na sexta-feira após 580 dias preso na Polícia Federal em Curitiba
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Na noite de 7 de abril de 2018, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou de helicóptero à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba — ele passaria os próximos 580 dias numa sala de 15 metros quadrados que antes servia de dormitório para policiais federais.

Ao longo deste período, a operação Lava Jato foi do auge de sua popularidade para uma sequência de derrotas na arena política, na opinião pública e na Justiça.

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a execução provisória da pena, na última quinta-feira (07) que acabou propiciando a liberação de Lula, representa para a força-tarefa da investigação no Paraná o mais recente revés.

E mais: procuradores que já atuaram no caso dizem que a decisão do STF de proibir a prisão em segunda instância e as mudanças recentes no antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) podem ser a "pá de cal" para acabar com as investigações.

A Força-Tarefa da Lava Jato no Paraná se manifestou sobre a decisão do STF por meio de nota, na última quinta-feira (07).

"Para além dos sólidos argumentos expostos pelos cinco ministros vencidos (...), a decisão de reversão da possibilidade de prisão em segunda instância está em dissonância com o sentimento de repúdio à impunidade e com o combate à corrupção, prioridades do país", diz um trecho.

Lava tudo

A investigação começou em março de 2014, a partir de uma apuração sobre lavagem de dinheiro num posto de gasolina de Brasília.

Nos anos seguintes, os investigadores provaram nos tribunais a existência de um cartel de empreiteiras montado para fraudar concorrências públicas. Levaram à prisão os donos de algumas das maiores empresas do país, além de políticos de vários partidos.

A Lava Jato resultou também em 12 processos contra Lula, inclusive o do chamado "tríplex do Guarujá", que resultou na prisão do ex-presidente.

Neste último processo, o líder petista é acusado de receber da empreiteira OAS reformas em um apartamento de três andares no balneário do Guarujá, no litoral de São Paulo. O imóvel nunca pertenceu formalmente a Lula, mas o Ministério Público alega que as negociações só foram interrompidas quando o caso veio a público.

As reformas no apartamento seriam uma retribuição a Lula pelo suposto favorecimento à empresa em três licitações da Petrobras.

Lula foi solto pelo juiz titular da 12ª Vara de Execuções Penais do Paraná, Danilo Pereira Jr., na tarde da última sexta-feira (10). A soltura do ex-presidente é decorrência da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na última quinta-feira (7).

Por 6 a 5, ministros do Supremo decidiram pela prisão apenas após o trânsito em julgado
Por 6 a 5, ministros do Supremo decidiram pela prisão apenas após o trânsito em julgado
Foto: Agência Brasil / BBC News Brasil

A Corte entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) está de acordo com a Constituição - e por isso, ninguém pode começar a cumprir pena antes que todos os recursos tenham se esgotado. As ações sobre o assunto foram apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelos partidos PC do B e Patriota (antigo PEN).

Além de Lula, até outros 4.895 mil pessoas presas também poderão se beneficiar da decisão do STF, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça.

A Lava Jato da época da prisão de Lula

Nos primeiros meses de 2018, quando Lula foi preso, a investigação parecia consolidada.

Em março estreava na Netflix a série O Mecanismo, na qual o ator Selton Mello representava um policial federal obstinado em combater a corrupção. Àquela altura, 84% dos brasileiros achavam que a Lava Jato deveria continuar, de acordo com pesquisa do Instituto Datafolha (abril).

Em março de 2018, 84% dos brasileiros achavam que a Lava Jato deveria continuar, segundo Datafolha
Em março de 2018, 84% dos brasileiros achavam que a Lava Jato deveria continuar, segundo Datafolha
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Março de 2018 foi também quando a Lava Jato completou quatro anos de atividades. Àquela altura, os pedidos de ressarcimento - de recursos públicos supostamente desviados - somavam R$ 38,5 bilhões. Só o então juiz Sergio Moro tinha proferido 188 sentenças contra 123 réus, que somavam entre si 1.861 anos em penas, de acordo com levantamento feito à época pelo site de notícias G1 no Paraná.

No Supremo, a Lava Jato conseguiu tornar réu o atual deputado e ex-candidato presidencial Aécio Neves (PSDB-MG), dias depois da prisão de Lula. Para tanto, os ministros da Primeira Turma do STF deixaram de exigir o chamado "ato de ofício" - isto é, a prova do quê o denunciado fez para alguém, em troca da propina.

No fim de março de 2018, a Lava Jato completava quatro anos com pedidos de ressarcimento que somavam R$ 38,5 bilhões. Só o então juiz Sérgio Moro tinha proferido 188 sentenças contra 123 réus, que somavam entre si 1.861 anos em penas, de acordo com levantamento feito à época pelo site de notícias G1 no Paraná.

A Lava Jato de agora

À BBC News Brasil, um procurador da República que já atuou na Lava Jato disse que a decisão do STF pode representar uma "pá de cal" nas investigações.

"Pode ter certeza absoluta de que vai diminuir a intensidade (das investigações) muito mais rapidamente agora. O Supremo sepultou a Lava Jato. E vai colocar ainda outras pás de cal. Não tenho a menor dúvida disso", disse o investigador, sob anonimato.

A prisão após segunda instância era um dos "pilares" da Lava Jato, diz o procurador, porque a iminência de ir para a cadeia tornava a colaboração premiada uma estratégia de defesa interessante para os réus - os relatos dos delatores foram o "combustível" para mais de cinco anos de investigações.

"A colaboração é uma estratégia de defesa. O sujeito vê que vai ter uma condenação alta e faz uma colaboração para reduzir o dano. E também porque uma vez condenado em segundo grau, ele entra em cana", diz o procurador à BBC News Brasil.

"Agora ninguém mais vai fazer colaboração, porque não vale a pena. Agora, eu posso recorrer infinitamente, que não vai me acontecer nada", diz. "A tentativa de desestruturação (da Lava Jato) é bastante clara", diz o procurador, sobre a decisão do Supremo.

Em junho de 2019, o site jornalístico The Intercept Brasil começou a publicar a série de reportagens conhecida como "Vaza Jato", baseada em supostos diálogos do ministro da Justiça, Sergio Moro, e de procuradores no aplicativo de mensagens Telegram.

Reportagens denunciaram supostas irregularidades do atual ministro Sergio Moro quando era juiz dos casos da Lava Jato em Curitiba
Reportagens denunciaram supostas irregularidades do atual ministro Sergio Moro quando era juiz dos casos da Lava Jato em Curitiba
Foto: Reuters / BBC News Brasil

As conversas mostrariam Moro, então responsável por julgar os casos da Lava Jato, orientando o MP sobre como conduzir as investigações. O ex-juiz também aparece repassando informações privilegiadas aos procuradores, entre outras ilegalidades.

Moro e o MP não reconhecem a legitimidade das mensagens e negam qualquer irregularidade - mas as reportagens impactaram a opinião pública. O cineasta José Padilha, diretor da série O Mecanismo, por exemplo, disse recentemente à BBC News Brasil que cometeu um "erro de julgamento" sobre Moro.

Já o procurador Deltan Dallagnol, um dos principais personagens das mensagens vazadas, pode ver um processo contra si julgado nesta terça (12) pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Neste caso, a apuração está relacionada a uma entrevista para a rádio CBN na qual ele critica ministros do STF, e não diz respeito às mensagens do Telegram.

Vazamento de mensagens atribuídas a Dallagnol levantou suspeitas sobre a legalidade da condução de investigações pelo Ministério Público Federal no Paraná
Vazamento de mensagens atribuídas a Dallagnol levantou suspeitas sobre a legalidade da condução de investigações pelo Ministério Público Federal no Paraná
Foto: REUTERS/Rodolfo Buhrer / BBC News Brasil

Revés jurídico

No mês seguinte ao início das reportagens, em julho, o STF cortou outra "perna" da Lava Jato.

O presidente da corte, ministro Dias Toffoli, decidiu que informações detalhadas produzidas pelo antigo COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) não podem ser usadas em processos judiciais sem autorização prévia da Justiça. A decisão foi tomada atendendo a um pedido da defesa de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), e resultou em pelo menos 700 investigações paradas em todo o país, segundo levantamento do MPF.

Por decisão de Bolsonaro, o COAF hoje tem outro nome (Unidade de Inteligência Financeira), outro diretor e outra "casa": é ligado ao Banco Central.

Os dados do COAF eram usados principalmente para investigar crimes de lavagem de dinheiro - mas até apurações sobre a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) foram atingidas, segundo investigadores.

Mais recentemente, outra decisão do STF suscitou críticas dos procuradores de Curitiba. Em 2 de outubro, a Corte decidiu que réus que não são delatores têm o direito de falar por último nos processos, sempre que estiverem sendo julgados junto com réus que fizeram delação premiada. Como esta prática não foi observada ao longo dos últimos anos, vários processos da Lava Jato serão afetados - um deles é o do Sítio de Atibaia, do ex-presidente Lula.

A reação na política

Na política, os reveses se acumulam nos últimos meses. O procurador aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima, que integrou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, disse à BBC News Brasil no começo de setembro que a investigação era alvo de uma reação em bloco da classe política.

"Nós estamos com uma situação em que o poder político (...) se uniu contra a Lava Jato. Anteriormente a isso, nós tínhamos os políticos agindo isoladamente contra a Lava Jato, mas não em grupo, o sistema agindo coletivamente. Hoje não: nós vemos o Congresso Nacional, nós vemos parte do Supremo Tribunal Federal, nós vemos instituições diversas agindo contra a força-tarefa. Infelizmente isso se revela bastante difícil de lidar. Então, esse é o momento mais difícil que a Lava Jato tem passado nestes cinco anos", disse Santos Lima.

A opinião é contestada pelo cientista político Fábio Kerche, que pesquisa a Lava Jato. Para ele, não há "reação em bloco" da classe política contra a investigação, diferentemente do que ocorreu com a operação Mãos Limpas, na Itália.

No caso brasileiro, o que existe é uma percepção de certos setores da política e do Judiciário de que a Lava Jato agiu de forma ilegal, diz Kerche, por causa das revelações da Vaza Jato.

"Não há elementos objetivos que mostrem essa reação em bloco da classe política. O que caiu como uma bomba no Judiciário, na opinião pública e na elite política foi a Vaza Jato. Com esse clima diferente, as pessoas passaram a rever algumas opiniões", disse Kerche à BBC News Brasil.

"As pessoas passaram a questionar se a Lava Jato estava agindo de acordo com o devido processo legal", diz ele, que é doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de um livro sobre a investigação brasileira.

O fato é que as derrotas no Legislativo também vão se somando - além daquelas no STF.

Sergio Moro é o ministro mais popular do governo de Jair Bolsonaro (PSL), mas o pacote anticrime que ele apresentou ao Congresso no começo do ano foi modificado de forma drástica - e ainda não há previsão de quando será votado.

Ao mesmo tempo em que modificava o pacote anticrime de Moro, o Congresso aprovou em agosto uma nova lei contra o abuso de autoridade que foi duramente criticada por procuradores e policiais - e que resultaria em punições para os agentes responsáveis pela Lava Jato em pelo menos três situações ocorridas durante a operação.

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