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Evo Morales e a tentação do terceiro mandato presidencial

22 jan 2015 - 12h20
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Reuters
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Foto: BBC Mundo / Copyright

Terceiro mandato presidencial seria impensável na América Latina há três décadas

Quando tomar posse para seu terceiro mandato consecutivo nesta quinta-feira, o presidente da Bolívia, Evo Morales, confirmará o ressurgimento de uma prática que pareceria impensável na América Latina há três décadas.

Efetivamente, na essência da denominada "terceira onda democrática", que transformou radicalmente o continente dos Trujillo, Somoza, Pinochet e Stroessner no final dos anos 70 e início dos anos 80, a mera ideia de reeleição chegou a ser considerada completamente um anátema em quase toda a América Latina.

Mas logo depois do juramento de Morales, a região passará a ter três de seus atuais mandatários ocupando a presidência pela terceira vez consecutiva.

E a lista ─ na qual também figuram o equatoriano Rafael Correa e o nicaraguense Daniel Ortega ─ seria ainda mais extensa se o venezuelano Hugo Chávez não tivesse morrido pouco depois de sua segunda reeleição. Chávez estava havia 14 anos à frente do governo venezuelano.

Esquerda e direita

À primeira vista, o principal denominador comum desse continuísmo parece ser a tendência à esquerda de seus governantes, todos vinculados em maior ou menor grau ao projeto "Socialismo do século 21" liderado por Chávez.

Mas, como lembra o diretor para América Latina e o Caribe do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA), Daniel Zovatto, foram na verdade os governos de direita que começaram a solapar o consenso anti-reeleição instalado no continente logo depois do fim das ditaduras sangrentas dos anos 70.

"Paulatinamente o vírus da reeleição foi tomando força, não pela mão dos governos bolivarianos como muitos acreditam, mas sim como uma marca dos governos neoliberais", diz Zovatto.

"E o primeiro passo foi passar da reeleição alternada à reeleição consecutiva, com a característica de que essa era uma reeleição feita sob medida para o governante da vez, com nome e sobrenome. O objetivo era, claro, continuar no poder a qualquer custo", acrescenta o especialista.

Esse foi, por exemplo, o caso de Carlos Menem na Argentina, Alberto Fujimori, no Peru, e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, aos quais alguns anos mais tarde se somaria o colombiano Álvaro Uribe.

"E um grupo importante desses presidentes, depois de obter um segundo mandato, também quiseram buscar um terceiro mandato consecutivo. Foi o caso de Menem, de Uribe e Fujimori", lembra Zovatto.

Gosto pelo poder

Continuísmo é tendência forte nos governos da América do Sul

Naquela ocasião, as justificativas oferecidas por esses governantes não se diferenciavam muito das que são apresentadas agora: necessidade de mais tempo para completar seu plano de governo, o desejo de maior estabilidade, respeito à verdadeira vontade popular, etc.

Apesar disso, alguns especialistas, como o cientista político boliviano Jorge Lazarte, acreditam que há uma razão muito mais sensível que une todos os presidentes que insistem na reeleição, independentemente de seu espectro político.

"O poder tem um efeito patológico: quando os que estão no poder estão por muito tempo, acabam não querendo sair", opina Lazarte.

"E, no final, só lhes interessa manter-se no poder e defender interesses que não existiam quando eles não estavam no poder", diz ele à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Mas por que Menem, Uribe e Fujimori ─ este último que conseguiu obter um terceiro mandato, no entanto, interrompido dramaticamente na metade por causa de acusações de fraude ─ fracassaram, enquanto que Chávez, Correa, Morales e Ortega tiveram êxito anos mais tarde?

"Me atreveria a dizer que os países onde o terceiro mandato fracassou são institucionalmente mais fortes do que os países onde esse instrumento político triunfou", avalia Sandra Borda, cientista política da Universidade de Los Andes, na Colômbia.

"Na Colômbia, por exemplo, o que aconteceu foi que, apesar do esforço desinstitucionalizador de um governo claramente caudilhista e personalista, a iniciativa não logrou êxito e o Tribunal Constitucional (o Supremo Tribunal Federal colombiano) freou o assunto a tempo", acrescenta Borda, em alusão à tentativa do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe de concorrer a um terceiro mandato.

"Se alguém permanece muito tempo no poder pode conseguir que a divisão de poderes, que é a chave para toda e qualquer democracia, desapareça e cada vez se torne mais difícil que surja outra pessoa que o desafie politicamente", acrescenta Borda.

Economia

O economista boliviano Carlos Toranzo concorda. Por outro lado, ele também acredita que a bem-sucedida terceira reeleição de Morales não pode ser explicada sem levar em conta o bom momento econômico vivido pelo país durante seus primeiros mandatos.

"Estas são tendências que se repetem quando há governos populistas apoiados por uma economia em franco crescimento, pois podem, a partir daí, dividir renda. Os regimes que dividem renda geram uma espécie de clientelismo muito forte e por isso se mantêm tanto tempo no poder", opina.

E, de fato, talvez por isso o continuísmo é uma tendência mais forte na América do Sul do que na América Central: as economias sul-americanas se beneficiaram mais da alta do preço das commodities, o que permitiu aos governos da região investir mais agressivamente em programas sociais.

Enquanto isso, o fracasso dos esforços de uma segunda reeleição dos governos neoliberais no início do século também pode ser entendido pela pouca popularidade das medidas de ajuste fiscal e também dos problemas econômicos que começavam a surgir.

Lazarte, no entanto, adverte que o fato de os governos continuístas de hoje também serem muito frequentemente governos populistas não os torna necessariamente exemplos de democracia.

E, na verdade, a maioria dos acadêmicos parece concordar que um amplo apoio popular não é suficiente para que um governo mereça a classificação de "democrático".

Economias sul-americanas foram beneficiadas pela alta do preço das commodities

Prós e contras

"Há um setorda doutrina, no qual me incluo, que considera que a democracia não pode ser analisada unicamente em termos de maiorias, mas também em termos de república, ou seja: divisão de poderes, sem hiperpresidencialismo e com alternância", diz Zovatto.

"E a alternância não tem de ser obrigatória, mas deve ser possível", acrescenta o diretor regional da IDEA, que, no entanto, reconhece que nem todos os teóricos pensam da mesma forma.

De fato, na América Latina, exista outra visão, representada por teóricos como o falecido Ernesto Laclau, na qual a reeleição indefinida não é considerada um problema se for garantido o respeito às decisões da maioria.

E considera a alternância em processos de "revoluções cidadãs" como as da Venezuela, Equador, Nicarágua e Bolívia como algo "perigoso", porque pode ser uma possível ameaça aos progressos sociais obtidos sob estas bandeiras.

Esse foi um dos argumentos centrais das campanhas de reeleição de Cháves, Correa, Ortega e Morales.

Também foi algo presente também nas campanhas de partidos como o PT, no Brasil, e a Frente Ampla, no Uruguai, que já estão há quatro e três mandatos consecutivos no poder, mesmo com alternância entre integrantes destas legendas.

O mesmo acontece com o Kirchnerismo, que está há três mandatos no comando da Argentina.

"O que temos visto, sobretudo nos últimos anos, são governos longos, em alguns casos de partidos e em outros de pessoas, precisamente porque realizaram programas sociais muito ativos nos quais foram beneficiados um amplo setor da população, principalmente aqueles que viviam em condições de pobreza", explica Zovatto.

"E acredito que a alternância virá quando a oposição ou oposições constituam uma verdadeira alternativa e deixem de ser vistas como uma ameaça para estes setores", acrescenta.

Para os governos no poder, por sua vez, o maior desafio será conseguir manter o apoio popular em um contexto de receitas decrescentes por causa da queda do preço do petróleo e das matérias primas que financiaram seus gastos sociais.

E isso significa que é a economia, mais que a oposição política ou as mudanças constitucionais, que pode terminar impedindo que se acabe falando, na América Latina, de quartos mandatos.

Mas em um contexto de instituições e oposições debilitadas pelo continuísmo no poder, a volta de uma maior alternância não está garantida. Nem será fácil.

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