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Como Brasília se tornou também a 'capital mística' do Brasil

História do Distrito Federal envolve celeiro de religiões e mitos próprios, incluindo a previsão de um santo da igreja católica e uma possível semelhança com a disposição das pirâmides egípcias.

25 mar 2018 - 16h03
(atualizado às 16h10)
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A história do Distrito Federal não foi marcada apenas pelo entusiasmo de Juscelino Kubitschek ou pelo modernismo de Oscar Niemeyer. O local atraiu uma diversidade significativa de crenças vindas de todas as regiões do país, da ufologia à astrologia, passando pelo Santo Daime e a wicca, que se instalaram e ali permanecem até hoje. Além disso, a cidade carrega outras culturas religiosas originais e até mitos próprios.

Um deles remete ao ano de 1883. O primeiro padroeiro de Brasília, padre João Bosco, fundador da ordem católica dos Salesianos no Brasil, teria previsto a criação da cidade antes mesmo da Constituição de 1891, que demarcou o território no Planalto Central para a transferência futura da capital do país.

Pessoas se reúnem no Vale do Amanhecer, doutrina que foi originada em Brasília | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Pessoas se reúnem no Vale do Amanhecer, doutrina que foi originada em Brasília | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Foto: BBC News Brasil

De acordo com o site de divulgação do Santuário Dom Bosco, erguido em homenagem ao sacerdote, ele teria sonhado, em 1883, que sobrevoava uma região que ia da Cordilheira dos Andes ao oceano Atlântico.

No sonho, entre os paralelos de latitude 15 e 20, uma voz teria dito, repetidamente: "Quando se vier a cavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida que vai jorrar leite e mel. Será uma riqueza inconcebível".

A suposta premonição de Padre Bosco seria um presságio do caráter místico que Brasília teria. A cidade está localizada na latitude 15º79', e o Distrito Federal abriga um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil - além de um dos mais elevados índices de desigualdade econômica do país, segundo estudo divulgado em 2016 pela Oxfam Brasil, pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e pela organização Nossa Brasília.

'Origem egípcia' e presença de óvnis

Algumas teorias foram criadas ao longo dos anos para explicar o suposto caráter místico da região. "Há histórias de que a cidade foi construída na mesma disposição de pirâmides do Egito. Tem, também, lugares místicos próximos, como Alto Paraíso, além de vários outros que cercam Brasília. A própria construção do local é muito mística, com alguns relatos de que JK era maçom", diz Thiago Ticchetti, ufólogo, escritor e coordenador da Comissão Brasileira de Ufólogos (CBU).

A afirmação dele diz respeito a alegações contidas no livro "Brasília Secreta: Enigma do Antigo Egito", publicado pela Editora Pórtico no ano 2000. Segundo o livro, de autoria da egiptóloga Iara Kern e do pesquisador Ernani Pimentel, o desenho e a disposição dos edifícios da capital se assemelham a uma cidade egípcia erguida pelo faraó Akhenaton, casado com Nefertiti, rainha da XVII Dinastia do Egito Antigo, em homenagem ao deus Aton.

O carioca Ticchetti se mudou para Brasília quando tinha 17 anos. Seu interesse por ufologia começou em 1982, quando viu um fenômeno estranho ocorrer na Pedra da Gávea, formação rochosa localizada à beira-mar na capital fluminense. "Eu estava olhando, estava brincando à noite, e apareceu uma luz vermelha em cima da pedra. Ela foi descendo até o 'nariz' da montanha, onde o pessoal costuma saltar de asa-delta. E a luz, de repente, desapareceu. Então, eu fiquei olhando aquilo, e a luz de novo surgiu vermelha, ficou maior, disparou e sumiu".

Segundo o ufólogo Thiago Ticchetti, em 1991, mais de 25 pessoas disseram ter visto um disco voador sobrevoando o presídio da Papuda | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Segundo o ufólogo Thiago Ticchetti, em 1991, mais de 25 pessoas disseram ter visto um disco voador sobrevoando o presídio da Papuda | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Foto: BBC News Brasil

Hoje, Thiago é uma das referências brasileiras no estudo de objetos voadores não-identificados, os chamados óvnis. Encontrou em Brasília um terreno fértil para coleta de relatos. Ele frisa, no entanto, que o cenário brasiliense de ufologia é predominantemente místico, enquanto seu trabalho se assemelha mais a perícias policiais, com coleta de fotos, vídeos, fragmentos de solo e testemunhos pessoais.

"Recebi mais de 40 casos desde que comecei a investigar, mas a maioria dos 'avistamentos' era, na verdade, de aviões ou satélites. Desses 40, apenas 5 ou 6 são inconclusivos. Eu nunca vou dizer para você que são seres ou naves extraterrestres, porque a gente não sabe. Mas é o que acredito, é o mais plausível para mim".

Segundo o ufólogo, em 1991, mais de 25 pessoas disseram ter visto um disco voador sobrevoando o presídio da Papuda.

Anos depois, em 1996, testemunhas disseram ter visto um objeto estranho sobre a barragem do Lago Paranoá e tiraram fotos do fenômeno.

A Entidade Brasileira de Estudos Extraterrestres (EBE-ET), também localizada em Brasília, tem uma interpretação mais ampla da ufologia. O presidente dela, Fábio Jed, e sua mulher, Dalila Figueiredo, descrevem a organização.

"A ufologia tem essa ideia do desconhecido e é um estudo multidisciplinar. Física, astronomia, biologia. Mas esses conhecimentos científicos não abarcam tudo", diz Fábio Jed, presidente da EBE-ET. Sendo mais direta, a esposa dele, Dalila Figueiredo, garante que a humanidade é dominada por uma elite alienígena metamórfica, que se alimenta da adrenalina do sangue humano para sobreviver. Ela afirma que o planeta Terra está sendo teleguiado por elites reptilianas: "Nossa elite política é totalmente dominada. Os verdadeiros donos do mundo querem impor a 'Nova Ordem Mundial', e não são humanos".

Fábio Jed acredita que Brasília têm um potencial especial para a pesquisa da ufologia: "O mundo tem o que a gente chama de 'hot zones', que são os locais onde 'ufos' (unidentified flying objects, o mesmo que óvnis em português) aparecem com mais frequência. Eu diria que o Planalto Central do Brasil é uma das principais".

Fabio Jed e a esposa Dalila Figueiredo são da Entidade Brasileira de Estudos Extraterrestres | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Fabio Jed e a esposa Dalila Figueiredo são da Entidade Brasileira de Estudos Extraterrestres | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Foto: BBC News Brasil

Vale do Amanhecer

"Ó ninfas encantadas pelo reino central, elevem suas mentes à plenitude das forças benditas da falange de Yemanjá." Nessa hora, cerca de 100 pessoas se reuniam sob uma estrutura em formato de estrela, enquanto outras centenas aguardam sua vez, ao som de uma oração solene e contínua, a 50 minutos do Congresso Nacional. Os integrantes do Vale do Amanhecer, grupo de médiuns sediado em Planaltina, no Distrito Federal, foram chamados pelos líderes para um culto urgente.

"O ritual da estrela funciona três vezes ao dia, mas hoje ele é especial. Quando convocado à noite, há o comparecimento em massa dos nossos médiuns. Geralmente acontece quando existe o perigo de uma guerra no mundo, ou quando o Brasil passa por crises", explica Jairo Zelaya, Trino Herdeiro do Vale e responsável pela administração da doutrina.

O enredo principal do culto se desenvolve a partir do Pai Seta Branca, reencarnação de São Francisco de Assis como cacique tupinambá e espírito líder da religião | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
O enredo principal do culto se desenvolve a partir do Pai Seta Branca, reencarnação de São Francisco de Assis como cacique tupinambá e espírito líder da religião | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Foto: BBC News Brasil

A lua cheia da primeira sexta-feira de março não foi escolhida para o evento por acaso. Ela potencializaria o ritual.

O Vale do Amanhecer é o local onde a Doutrina do Amanhecer foi criada em 1969 pela autodenominada clarividente sergipana Neiva Chaves Zelaya. Toda a estrutura do templo principal, bem como dos rituais, foi idealizada a partir de suas 'visões'.

A simbologia presente é orgulhosamente sincretista - Jesus de Nazaré divide orações com a Mãe Iara do rio Amazonas e a Iemanjá das águas salgadas. O enredo principal do culto se desenvolve a partir do Pai Seta Branca, reencarnação de São Francisco de Assis como cacique tupinambá e espírito líder da religião. Os fiéis se reúnem em torno da mediunidade, e trabalhos de cura espiritual de doenças são realizados com frequência.

"Uma vez, uma pessoa em uma cadeira de rodas que estava ao meu lado saiu andando. O paciente parecia que tinha tido um derrame. Ele chorou muito, ficou muito feliz e se levantou. Eu fiquei muito impactada", contou Daniela Azevedo, psicanalista e médium de incorporação, ou Ninfa Lua. "Hoje, o trabalho da nossa estrela é para aliviar as correntes negativas que atuam sobre as pessoas no planeta inteiro. Nos últimos tempos, sinto que essas correntes ficaram mais intensas".

Médiuns no cultos do Vale do Amanhecer (Foto: Raphael Ferreira)
Médiuns no cultos do Vale do Amanhecer (Foto: Raphael Ferreira)
Foto: BBC News Brasil

Inri Cristo: 'Brasília, a nova Jerusalém'

A astrologia, pesquisa holística do posicionamento de corpos celestes, também apresenta uma miríade de linhas locais de estudo sobre o famoso céu de Brasília.

Carlos Maltz, astrólogo, psicólogo e ex-baterista da banda Engenheiros do Hawaii, estuda o tema desde os anos 1990. Em um futuro mais distante, ele acredita que Brasília será a capital de uma nova era: "Tem toda essa questão mística. É a capital do que ainda virá, o embrião do que será o Brasil um dia. Brasília pode se tornar uma espécie de 'Nova Jerusalém', uma capital espiritual".

Carlos Maltz, astrólogo, psicólogo e ex-baterista da banda Engenheiros do Hawaii (Foto: Raphael Ferreira)
Carlos Maltz, astrólogo, psicólogo e ex-baterista da banda Engenheiros do Hawaii (Foto: Raphael Ferreira)
Foto: BBC News Brasil

Quem tem uma opinião parecida sobre a cidade é um dos líderes religiosos mais controversos - e, talvez por isso, midiáticos - do país. Por ter recebido, segundo ele, um recado direto de Deus para se instalar no Distrito Federal, Inri Cristo trouxe sua instituição mística, a Suprema Ordem Universal da Santíssima Trindade (SOUST), para uma chácara no Gama, a 40 minutos da Esplanada dos Ministérios.

Quando a reportagem esteve no local, a prece começou com uma cortina vermelha se abrindo, e Inri Cristo fazendo uma reza de cerca de oito minutos.

(Foto: Raphael Ferreira)
(Foto: Raphael Ferreira)
Foto: BBC News Brasil

Depois, durante a entrevista, Inri Cristo explicou que a SOUST não pretende ser uma igreja, e sim uma instituição revolucionária. "Em 1980, quando vim pela primeira vez a Brasília, Deus me disse: 'aqui será a Nova Jerusalém'. Ele disse que eu deveria me mudar para cá quando as autoridades constituídas reconhecessem meu nome oficialmente, lá naquele tribunal onde está todo mundo morrendo de medo, em Curitiba", ironiza, fazendo alusão à atuação do juiz federal Sergio Moro na Operação Lava Jato.

Inri, que conta já ter sido preso várias vezes e expulso da Inglaterra, já fez visitas ao Congresso brasileiro e diz ser obrigado pelo "altíssimo" a acompanhar o noticiário. Ele critica o cenário político atual: "Faz-me rir o secto de ditadores contumazes, sanguinários, que falam em democracia aqui."

Liberdade religiosa

A manutenção da laicidade do estado no futuro é uma preocupação em comum entre alguns dos grupos religiosos entrevistados.

"Uma coisa que a gente tem firmado por aqui é o apoio apenas a políticas comprometidas com a manutenção do estado laico", diz Fernando de La Rocque, antropólogo e fundador do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Alfredo Gregório de Melo (CEFLAG), que segue a doutrina espiritual do Santo Daime.

Mais conhecida como Céu do Planalto, a CEFLAG foi uma das primeiras comunidades de Brasília centradas no uso religioso do chá de ayahuasca, bebida feita a partir de um cipó amazônico que provoca alterações na consciência e nos sentidos. Desde os anos 1990, encrustado em um pequeno trecho florestado próximo à parte norte do lago Paranoá, o coletivo místico se organiza em comunidade, com alguns dos seguidores morando em casas no entorno do salão onde as cerimônias religiosas acontecem.

'O chá abre as portas da percepção para onde está o reino de Deus', diz Fernando de La Rocque | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
'O chá abre as portas da percepção para onde está o reino de Deus', diz Fernando de La Rocque | Foto: Raphael Ferreira/BBC Brasil
Foto: BBC News Brasil

A religião do Santo Daime, cujo nome vem de 'dai-me amor', mescla elementos do xamanismo, do cristianismo e do espiritismo, e foi fundada pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, descendente de escravos. A crença promove um diálogo específico entre a filosofia cristã e a preservação da natureza, usando o chá como instrumento transcendental.

"O chá abre as portas da percepção para onde está o reino de Deus, que Cristo falava que está dentro de nós. Quanto mais você entrar para dentro de si, mais você conhece Deus. Então o chá Daime é esse facilitador, nos limpa, nos coloca em contato com essa dimensão espiritual", Fernando explica.

Uma outra religião que também tem como um dos pilares fundamentais a relação íntima com a natureza vem ganhando força na capital federal. Disseminada por correntes do neopaganismo europeu e americano, a wicca, uma corrente de bruxaria contemporânea, produziu tradições autóctones no Distrito Federal e organiza rituais periódicos pelos parques da cidade, em especial em noites de lua cheia.

"Na wicca, o que nos une é a ligação com a natureza e a crença em uma Deusa e em um Deus. A grande criadora de tudo é a Deusa, e o Deus é o consorte dela. Ela é a noite, o caos primordial, e ele é a luz. A união dos dois gerou tudo o que existe, em um eterno ciclo de vida, morte e nascimento que celebramos em oito rituais anuais chamados de Sabbats", explicou Dimitrae Keetan, Alto Sacerdote da tradição de wicca denominada Caminhos das Sombras, que tem Brasília como terra natal e conta com cerca de 60 pessoas.

"Na wicca, o que nos une é a ligação com a natureza e a crença em uma Deusa e em um Deus", explica Dimitrae Keetan
"Na wicca, o que nos une é a ligação com a natureza e a crença em uma Deusa e em um Deus", explica Dimitrae Keetan
Foto: BBC News Brasil

Segundo o bruxo, a tradição Caminho das Sombras preza pela autoaceitação e pelo equilíbrio. "Um dos temas que mais mobilizam a wicca como um todo é a igualdade, como a de gênero e de religião. A wicca atrai muitos gays, por exemplo, porque a Deusa abraça todos. Então, pessoas LGBT se sentem acolhidas. Temos, na nossa tradição, uma integrante que é uma mulher trans".

Dimitrae conta que a interação de seu grupo religioso com a cidade é tranquila, e confirma a impressão de outros entrevistados: "A gente vive conversando sobre isso. Se você parar para ver, a arquitetura de Brasília responde tudo. A cidade foi criada para ser um centro místico. É muito claro para qualquer praticante de magia que Brasília é muito convidativa".

Contudo, ele vê a capital federal como uma "bolha" de tolerância, e demonstra apreensão em relação ao futuro da liberdade religiosa no país. "Me preocupo muito com a bancada evangélica no Congresso, porque muitas das leis são decididas apenas com base em conceitos cristãos. Não há nada de errado com o cristianismo mas, as vezes, temos pontos de vista diferentes. Somos a favor da escolha. Você é livre para escolher o que quer para a sua vida".

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