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Violência no Ceará: anunciar medidas contra facções antes de aplicá-las incentiva ondas de violência, diz pesquisador

'Se você quer transferir, transfere logo', diz sociólogo Francisco Amorim, que estuda violência e narcotráfico e vê em articulação entre polícia Civil e Federal o melhor caminho para combate ao crime.

15 jan 2019 - 09h54
(atualizado às 09h58)
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Ataques no Ceará começaram no dia 2 de janeiro e já somam 190 episódios em 43 municípios
Ataques no Ceará começaram no dia 2 de janeiro e já somam 190 episódios em 43 municípios
Foto: EPA / BBC News Brasil

Ao anunciar as medidas que tomaria contra as facções, o Secretário de Administração Penitenciária do Ceará, Luís Mauro Albuquerque, permitiu que as organizações criminosas reagissem para tentar intimidar o governo local.

Essa é a opinião do sociólogo e jornalista Francisco Amorim, que há vários anos pesquisa a queda de braço entre o Estado e o narcotráfico. Ele trabalhou por 13 anos como repórter policial e há oito anos se dedica a estudar a violência urbana e a dinâmica do narcotráfico na América Latina.

"O que me parece que houve no Ceará foi uma comunicação midiática de uma ação policial. Via de regra a ação policial se dá pela descrição e pelo processo efetivo, e não pelo anúncio. O anúncio tem um viés importante, mas se ele é feito em um momento equivocado tu gera esse tipo de reação", afirmou em entrevista à BBC News Brasil.

"Se você quer transferir, você transfere logo. Eu entendo a posição do secretário, mas toda vez que tu diz 'eu vou isolar o líder', o líder sabendo que vai ser isolado já manda ordens."

A onda de violência no Ceará já registra ao menos 190 ataques em 43 municípios. O Estado recebeu o reforço da Força Nacional de Segurança, 309 suspeitos foram detidos e 35 detentos transferidos para prisões federais. Mesmo assim, as ações de facções criminosas continuam.

Os ataques começaram no dia 2 de janeiro, depois que o novo Secretário de Administração Penitenciária, Luís Mauro Albuquerque, anunciou que os presídios do Ceará não seriam mais divididos por facções e que a entrada de celulares seria fiscalizada com rigor. O governador do Ceará, Camilo Santana, disse na última quinta-feira que o Executivo não recuaria diante dos ataques.

Amorim, que é mestre e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde integra o Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania, além de ser professor da Faculdade de Comunicação Social da UniRitter/Laureate Universities, passou um mês na Colômbia, nas cidades de Bogotá, Buenaventura, Cali e Medellín, um mês no México, em lugares como Cidade do México, Culiacán e Xalapa, e um mês no Rio de Janeiro para estudar o impacto das facções criminosas na vida dos moradores da periferia. O estudo, que deu origem à sua tese de doutorado, analisou também a cidade onde mora, Porto Alegre (RS).

Amorim alertou que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), também estaria dando a possibilidade de as facções se prepararem.

O pesquisador afirma que há exemplos positivos de combate ao crime organizado, como o que ocorreu na cidade colombiana de Medellín. E que uma saída seria a melhor articulação entre a polícia Civil e a Federal.

Leia os principais trechos da entrevista com Francisco Amorim:

Pichação feita durante ataques no Ceará pede saída do secretário da Administração Penitenciária
Pichação feita durante ataques no Ceará pede saída do secretário da Administração Penitenciária
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O que as nove cidades da América Latina que o senhor estudou têm em comum?

Francisco Amorim - São cidades emblemáticas para a compreensão do tráfico na América Latina e das estruturas de produção, distribuição e consumo de drogas. E são cidades onde há tensões entre as instituições formais/legais e as forças informais estabelecidas pelo narcotráfico.

Quem está na periferia, na Maré ou no Alemão, diariamente se move dentro de múltiplas territorialidades. Ao mesmo tempo em que tem que cumprir a lei e seguir as regras do Estado, também tem que cumprir a lei do tráfico.

BBC News Brasil - E é essa disputa entre Estado e facções que ocorre no Ceará?

Amorim - É um processo de disputa de territórios. Mas daí tu vai dizer: "os ataques estão vindo de dentro dos presídios". O presídio é uma barreira criada para conter os criminosos, mas que ao mesmo tempo encastela. Por exemplo, no Morro do Alemão existem muros para proteger os teleféricos e permitir um certo controle policial em uma operação. Mas estas mesmas barreiras servem para o tráfico se entrincheirar e estabelecer suas regras ali dentro.

É o que acontece nos presídios. Eu estou colocando estas pessoas em um outro ambiente, mas eu não tenho controle sobre este ambiente. Então eu só permito que elas se organizem se aproveitando desses mesmos muros. É o que acontece nos presídios do Norte e o que acontece no Presídio Central, de Porto Alegre.

BBC News Brasil - O que acontece no Ceará é uma questão local ou comandada por facções de fora do Estado?

Amorim - Para mim a grande questão não é se a decisão de ataque deriva de uma facção nacional ou local. O importante é se ter a ideia de que o controle das prisões no Ceará parece estar efetivamente nas mãos das organizações, que estão razoavelmente articuladas para promover ações fora dos presídios.

Me parece que o que houve no Ceará foi uma comunicação midiática de uma ação policial. Via de regra a ação policial se dá pela discrição e pelo processo efetivo, e não pelo anúncio. O anúncio tem um viés importante, mas se ele é feito em um momento equivocado tu gera esse tipo de reação. Se você quer transferir, você transfere logo. Mas uma transferência não pode ocorrer sem um processo muito claro de investigação policial para identificar quem tu vai transferir lá dentro e como tu vai neutralizar a ação que virá fora.

Quando há uma ação como essa que está acontecendo no Ceará, o líder da facção não diz "você deve explodir a lancheria da rua tal às 5 horas". Ele diz: "incendeia a cidade, com o que tu tiver". Eu tenho explosivo, então tento derrubar um viaduto, eu tenho uma metralhadora, então metralho um bar. Tu não tens ordens de um nível tão específico. Cada ator tem muita autonomia a partir de uma ordem principal. Tu recebes uma ordem para atacar, uma ordem para parar e tu tens uma escala de ação.

Para conter isso tu precisas de um trabalho de investigação muito forte, que inclui o monitoramento das quadrilhas, dentro e fora dos presídios, a identificação de quem está no comando aqui fora, e principalmente o rápido isolamento dos líderes. Eu entendo a posição do secretário, mas toda vez que tu dizes "eu vou isolar o líder", o líder sabendo que vai ser isolado já manda ordens. Você não anuncia, você isola.

BBC News Brasil - Há o risco de estes ataques se espalharem para outros Estados?

Amorim - Não há elementos hoje para pensar em um efeito em cadeia decorrente do Ceará. É uma ação muito restrita a uma questão local. Mas toda vez que há um aviso de que vai haver uma mudança neste arranjo entre Estados e facções dentro dos presídios, ou sempre que houver uma suspeita de isso vai acontecer, tu vai ter estes movimentos.

BBC News Brasil - Sendo assim, o governador do Rio de Janeiro não está falando demais?

Amorim - Ele está falando muitas coisas. A melhor conduta policial é a execução e depois publicidade da ação. Toda vez que tu inverte esta ordem tu corre o risco de não ser efetivo. Eu não vou dizer que ele está falando demais, mas que ele garante às facções se articularem antes da ação. Está dando a possibilidade de as facções se prepararem.

Eu não vejo como problema as declarações de combate ao crime, porque tu precisas evidenciar que o Estado vai reagir. O problema é quando tu detalhas estas ações. Toda vez que o Estado tomar uma ação permitindo tempo de reação a gente vai ter este problema sim. Em todos os Estados em que secretários estão anunciando medidas em vez de já implementá-las, se corre o risco de um processo de reação.

Para Amorim, Witzel está dando a possibilidade de as facções se prepararem
Para Amorim, Witzel está dando a possibilidade de as facções se prepararem
Foto: AFP / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem falado muito sobre o combate ao crime. O que o governo federal deve fazer?

Amorim - É preciso um sistema integrado de troca de informações e ações integradas entre as esferas federal e estadual, porque há hoje uma rede de articulações entre as facções no Brasil. É preciso que se entenda quem são os líderes e como eles articulam. Para tu enfraqueceres uma facção paulista não adianta só combater ela em São Paulo, tu tens que entender o papel dela no Nordeste. A articulação entre as polícias Civil e Federal é o melhor caminho para combater o tráfico de drogas.

BBC News Brasil - O senhor viu medidas bem-sucedidas de combate às facções criminosas em outros países?

Amorim - A gente não tem nenhum lugar em que se tenha obtido a plena retomada de espaços ocupados pelo tráfico, mas existem locais onde estes processos se mostram mais exitosos, como em Medellín, na Colômbia. Em que pese ainda ter números altos de homicídios e ainda ter problemas com grupos locais, a cidade conseguiu dar continuidade ao processo de combate ao narcotráfico após a queda do Pablo Escobar.

Teve início um processo de segurança cidadã, de revitalização das áreas e de reconhecimento dos espaços - as comunas - como espaços da comunidade. Começa com a entrada do Estado em sua plenitude, não só com a força policial. Houve um processo de se colocar teleféricos, escadarias, escadas rolantes em alguns locais, pavimentar ruas, criar praças esportivas e promover atividades sociais.

Tu aumentas o processo de reterritorialização que permite a coerção social, que é a reconquista do espaço.

BBC News Brasil - As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criadas em 2008 no Rio de Janeiro, não surgiram com uma proposta semelhante? Por que não funcionaram?

Amorim - Uma ação de combate ao crime tem que ser uma política de Estado, não só de governo. Tem que ser de médio e longo prazo. Houve um crescimento grande das UPPs, que não se mantiveram fiéis às principais regras do início, como a utilização de policiais novos, recém-formados, que teriam esta ação de policiamento comunitário.

Se você se propõe a ocupar um espaço, você tem que saber que tem que ocupá-los por muito tempo e de maneira muito efetiva, não só policial. A UPP se transformou muitas vezes em um posto avançado da polícia na comunidade, e a comunidade continuou desprovida do resto do Estado.

E não vamos esquecer que o tráfico também tem um lado de colarinho branco. Os grupos criminosos lavam dinheiros com empresas, têm laranjas, operam no setor financeiro por meio de esquemas ilegais.

Então o combate ao crime organizado não se dá só pela ocupação do espaço na periferia, usado pelo varejo da droga, mas também pela investigação de como esse dinheiro circula no país e fora do país. Isso tem sido feito em algumas ações da Polícia Federal e das Polícias Civis, mas precisa de maior escala.

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