Com altar, pais celebram aniversários e choram a morte de filhos na Boate Kiss
ONG mantida por familiares de vítimas tenta tocar adiante o projeto de doação de alimentos iniciado por suas filhas, mortas na tragédia de Santa Maria
Durante o fim de semana que antecede o primeiro aniversário da tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria, onde 242 jovens morreram na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, uma ONG mantida por familiares de vítimas tenta tocar adiante o projeto de doação de alimentos iniciado por suas filhas. No calçadão que fica a algumas centenas de metros da casa noturna, uma barraca foi montada para arrecadação e, ao mesmo tempo, comemorar o aniversário do grupo de amigas que morreram juntas no incêndio. Ao lado de um altar ornado com objetos pessoais das jovens, pais choravam a perda das filhas em um misto de tristeza e indignação.
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As jovens Mirela, Gilmara, Flavia, Andrielle e Vitória tinham em comum, além da amizade, a vontade de ajudar o próximo. Após a trágica morte do grupo, as famílias decidiram criar a ONG Para Sempre Cinderelas, com o objetivo de continuar a iniciativa das jovens de distribuir doações a pessoas carentes.
Das cinco amigas, três tinham a mesma idade e faziam aniversário em janeiro: no dia 7, Vitória; no dia 24, Andrielle; e, no dia seguinte, era a vez de Flavia. Os familiares montaram uma espécie de memorial das jovens em cada um dos dias, com fotos e objetos pessoais, inclusive as bebidas que elas mais gostavam.
"O quarto dela está como ela deixou, com exceção da falta dela. Aos poucos eu vou dando umas roupinhas dela", conta Ligiane Righi da Silva, mãe de Andrielle. "Espero por uma resposta (sobre a punição dos culpados), assim como eu espero que minha filha volte para casa", afirma a mãe.
Segundo Ligiane, a tragédia ceifou as vidas de boa parte do grupo de amigos. "Foram 15 amigas perdidas. Se ela tivesse sobrevivido, ela não ia aguentar essa perda", disse a mãe, que encontrou, na companhia de outros pais na mesma situação, o conforto diante da morte precoce da filha. "Os pais juntos aqui, é o que ameniza a dor, é o que nos dá paz."
Aniversários e homenagens
Ligiane conta que reuniu os amigos de Andrielle na sexta-feira em sua casa, onde comemoraram seu aniversário. Em uma festa com direito a bolo e até mesmo tequila - "ela adorava tequila", lembra a mãe de Andrielle -, os amigos tocaram músicas no violão que pertencia à jovem, preservado pela família. "Ela gostava muito de tocar Reação em Cadeia, Capital Inicial...", recorda.
Neste sábado as homenagens estavam centradas na aniversariante do dia, Flávia, mas os parentes da jovem, principalmente a mãe, estavam muito abalados com a memória da perda em uma data tão emocionante, principalmente pela proximidade com o dia da morte. Perdas estas que os parentes prometem honrar em prol de mudanças e punições que impeçam que tragédias como a da Kiss voltem a se repetir pelo País.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.
Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.
Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.