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'Perdi emprego e casa. Mas não me preocupo': os depoimentos de brasileiros em Portugal

Histórias de 'zucas'que fizeram a rota contrária à do Descobrimento vão de milionários a ilegais que tentam a sorte

14 jul 2019 - 03h12
(atualizado em 15/7/2019 às 00h00)
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'Vim com tudo certo, mas tive um acidente e perdi emprego e casa'

Jonhy Jonhatan, 22 anos, "faz tudo"

8 meses em Portugal

De Presidente Castelo Branco (PR) para Amadora

No Brasil eu estava sem emprego, já fiz de tudo um pouco. Minha esposa tinha família em Portugal, e eles arrumaram tudo para nós dois. Entramos no país como turistas, mas eu já tinha acertado de trabalhar de mecânico na oficina onde o tio dela era gerente. O apartamento que a gente morava era dele. Só depois de um mês aqui e eu sofri um acidente de trânsito a caminho do trabalho: quebrei clavícula e bacia, meu pulmão foi afetado. Fui bem atendido no hospital, recebi alta para ir para casa. Os médicos me deram cinco meses de licença, mas a família dela não gostou. Disseram que eu era folgado, que eu já estava bom. Mas eram os médicos que diziam que eu não podia voltar ainda.

Nós dois passamos a brigar muito e acabamos nos separando. Com isso eu perdi o emprego e a casa. Só consegui ter onde ficar com ajuda do Jonas, que conheci em Lisboa, e alugou um quarto para mim. De brincadeira, o chamo de "pai". Agora trabalho com ele todos os dias, ajudando a fazer esculturas de areia. Logo que cheguei, como tinha contrato de trabalho, agendei a entrevista para me legalizar. Como fui demitido, vou ter que entrar com outro pedido, de trabalhador autônomo. Mas não me preocupo com isso agora. O Jonas está aqui há 3 anos, não tem documento nenhum, e nunca teve problemas. Apesar de tudo, não penso em voltar para o Brasil.

Violência

'Minha filha não tem medo de ir sozinha para a escola'

Nelson Pires da Costa, 43 anos, futuro motorista de Uber

1 ano em Portugal

Do Rio de Janeiro (RJ) para Cascais

Nossa família levava uma vida confortável: morávamos numa boa casa, as minhas filhas, de 14 e 10 anos, estudavam em colégio particular, tínhamos uma vida social movimentada. Minha esposa tinha um emprego estável; eu era dono de um reboque. O problema era a falta de segurança. Um dia, homens armados assaltaram uma van com crianças na porta da escola das meninas. Noutro, uma vizinha foi roubada na entrada da nossa vila. A violência estava muito perto. De medo, minha filha mais velha não andava uma quadra sozinha.

Em 2016 começamos a pensar na mudança. Meu pai era português, então eu pude pedir a cidadania. Nós nos organizamos financeiramente, juntamos algum dinheiro. Minha ideia era ter um reboque aqui, mas tive problemas com a categoria da carta de motorista e não deu certo. Agora vou começar a dirigir para o Uber. Minha esposa e minha mãe, que também veio conosco, estão fazendo doces e salgados para vender.

Vivemos de maneira simples, compramos o que é realmente necessário. Como não temos mais empregada, todo mundo precisa fazer suas tarefas para manter a casa em ordem. Hoje acho que é assim que deveria ter vivido sempre. A convivência familiar melhorou.

Sentimos saudades das pessoas que ficaram, mas esse é o único ponto negativo. Já temos amigos, as meninas se deram bem na escola, se enturmaram e conseguiram boas notas. A melhor parte é a sensação de liberdade. Minha filha mais velha agora vai sozinha para a escola.

Empreendedorismo

'Percebi que o país vivia um momento importante para o e-commerce'

A empresária brasileira Vanessa Caldas, em Oeiras 
A empresária brasileira Vanessa Caldas, em Oeiras
Foto: Reprodução/Expoforum Digitalks / Estadão

Vanessa Caldas Alexandre, 38 anos, empreendedora

1 ano e meio em Portugal

De São Paulo (SP) para Oeiras

Sempre empreendi no Brasil e cheguei a ter uma start-up nos Estados Unidos. Quando voltei ao País, inspirados no ecossistema de São Francisco, meu marido e eu montamos um negócio que ajuda empresas do varejo e da indústria a acelerar as operações de e-commerce. Fiquei três anos em São Paulo, mas com vontade de ter outra experiência internacional.

Estudei a possibilidade de mudança para sete países e, entre eles, Portugal era o que estava mais atrasado nos negócios de e-commerce. Muita gente criticou a escolha, mas viemos por entender teríamos mais a contribuir, que aqui agregaríamos valor.

Neste momento Portugal está preparado para promover a inovação tecnológica. Várias empresas de tecnologia estão vindo para cá, o governo incentiva o empreendedorismo. E o Brasil tem a aprender com Portugal no quesito internacionalização. As empresas portuguesas precisam trabalhar na Europa, não só no país. Algumas vendem em 20, 30 países. É um desafio conquistar cada país, cada cultura.

Escolhi Portugal sem nunca ter pisado no país. Nem sabia que havia praias tão bonitas. Como temos uma filha com seis anos, falar o mesmo idioma foi um bônus, que facilitou a adaptação dela. Viemos para desbravar um mercado, e até agora tem dado tudo certo.

Estudo

'Entrei na Universidade do Algarve usando a nota do Enem'

José Renato Fonseca Batista, 24 anos, estudante

1 ano e 8 meses em Portugal

De Santos (SP) para Faro

No Brasil, comecei engenharia ambiental, mas não me identifiquei. Estava pensando em mudar para o curso de Ciências do Mar da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), quando uma amiga comentou que eu poderia usar a nota do Enem para fazer Biologia Marinha na Universidade do Algarve. Pesquisei sobre o assunto, fiquei sabendo que a instituição é referência na Europa nessa área. Mandei minha nota, os outros documentos que pediam, e esperei. Foi um processo bem simples - e eles me aceitaram.

A parte que deu um nervoso foi o visto. Dei entrada no consulado de Portugal em São Paulo logo, mas eram tantos pedidos que, o que era para levar 30 dias, levou 90. Perdi o começo do semestre, mas no final deu tudo certo.

Na faculdade há bastante estrangeiros - a maioria do Brasil. Já aconteceu de um colega fazer piada, dizer que brasileiro é praga, mas de maneira geral sou bem tratado, consegui me integrar com os portugueses. Alguns professores duvidam da nossa capacidade. É verdade que o ensino médio daqui é diferente, eles já têm geologia, cálculo e uma química mais avançada. Mas quem sai para estudar em outro país é alguém que está sempre tentando se superar. Toda vez que um professor disse que os brasileiros teriam dificuldade por havia "lacunas a serem preenchidas", vimos que isso não passou de suposição falsa.

Burocracia

'Prestei serviço até para o governo sem ter autorização de residência'

Aline Camargo, 34 anos, publicitária

4 anos e meio em Portugal

De Cuiabá (MT) para Lisboa

No Brasil, meu marido e eu tínhamos uma produtora de vídeo, trabalhamos em campanha eleitoral em 2014 e, quando acabou esse trabalho, deixamos o País. Ele também é músico e decidimos vir para Portugal para fazer um documentário sobre o cavaquinho. Entramos como turistas, imaginávamos ficar alguns meses e, depois, seguir para outros lugares. Mas logo de cara nos apaixonamos pelo país.

Por seis meses viajamos por Portugal, visitamos aldeias pequenas, encontramos muitas pessoas dispostas a ajudar. O dinheiro foi acabando, mas então já conhecíamos muita gente, começamos a ter trabalhos remunerados na nossa área. Nessa época, por sermos autônomos, era preciso de um pedido especial para conseguir a residência, num processo que chegava a levar dois anos esperando a marcação da entrevista. Fomos deixando para depois.

Mesmo sem a residência tivemos uma vida normal, viajamos para a Itália, por exemplo, prestamos serviço para mais de uma câmara municipal. Eu engravidei e tive minha filha aqui, pelo sistema público de saúde. Pensando nela, decidimos que era aqui que queríamos ficar e fomos regularizar nossa situação. Consegui minha residência só este ano.

LGBT

'Posso andar na rua com minha esposa sem ser xingada ou ameaçada'

Glaucia Manzzaneira, 36 anos, professora de circo

7 meses em Portugal

De São Paulo para Porto

A partir de 2016 comecei a sentir uma mudança no Brasil, uma liberação do discurso de ódio contra a comunidade LGBT. Minha esposa e eu morávamos em São Paulo, perto da avenida Paulista, uma região com muitos homossexuais, onde antes costumávamos nos sentir seguras. Mas passamos a receber abordagens na rua: ser xingadas, zoadas, ameaçadas. Um dia, quando atravessávamos uma rua à pé, um carro acelerou para cima de nós, com o motorista gritando pela janela.

Na parte profissional, eu tive uma escola de circo durante cinco anos. Mas com a crise econômica, as coisas não andavam bem. Segurei até onde foi possível, mas chegou em um ponto em que precisaria de um grande investimento para continuar. No contexto das eleições, sem expectativa de crescimento no campo das artes, preferi fechar a escola.

Portugal foi um lugar que nos pareceu seguro e fácil para emigrar. TIvemos ajuda de um coletivo, o Queer Tropical. Minha esposa veio para Portugal fazer um mestrado e eu vim junto, como família. Consegui um emprego em um restaurante e já comecei a pegar alguns trabalhos de recreação infantil com circo, eventos.

Aqui pode até haver algum preconceito, noto alguns olhares, mas ninguém ousa nos abordar nas ruas.

Artista

'Os portugueses se interessam pela cultura brasileira'

Thaiane Anjos, 30 anos, atriz

4 anos em Portugal

Do Rio de Janeiro (RJ) para Lisboa

Há 4 anos eu quis fazer uma viagem pelo mundo, sem roteiro muito certo. Comecei por Portugal, fiquei três meses, e não quis mais saber de outro lugar. Voltei para o Rio de Janeiro, vendi tudo e vim tentar começar a carreira aqui.

Eu tinha conhecido uma escritora portuguesa e, quando ela fechou contrato para uma novela, me convidou para participar. Inicialmente seria uma participação pequena na novela Ouro Verde, de 20 episódios. Acabei fazendo mais de 200. Já fiz duas novelas, estou atuando com uma companhia de teatro na Ilha da Madeira, e já tenho acertado um curta metragem para este ano - será meu primeiro trabalho do tipo.

Aqui o esquema de trabalho é muito diferente. As gravações para TV que fiz no Brasil (atuou em "Flor do Caribe", "Além do Horizonte" e "Malhação" da rede Globo) o ritmo é mais acelerado. Aqui, por ser uma produção menor, tenho muito mais abertura. Eu me sinto mais próxima para poder opinar em todas as áreas, há muito acesso à toda equipe.

Em Portugal, minhas possibilidades de trabalho são limitadas porque o português que eu falo é o do Brasil. As duas personagens de novela que fiz eram brasileiras. Mas me sinto muito bem trabalhando com os portugueses, nunca tive nenhum preconceito, nenhuma regalia por vir de outro país. Eu gosto da cultura local e vejo que eles se interessam pelo que os brasileiros fazem. Há um troca muito grande, e tem sido cada vez maior.

Detido

'Fui barrado no aeroporto de Lisboa, mas um mês depois entrei na Europa por Paris'

Yelre Felipe, 23 anos,

De Belém (PA) para Sines

2 meses em Portugal

Morava em Anápolis, Goiás, com meu companheiro, mas tinha o sonho de viver na Europa. Uma tia, que estava em Portugal há dois anos e meio, disse que o país era ótimo - e nós decidimos nos aventurar. Meu companheiro foi primeiro, em janeiro. Ele entrou como turista e deu tudo certo, já chegou com trabalho. A gente juntou dinheiro e eu fui em abril. Mas me barraram na imigração. Só depois que voltei para o Brasil que percebi o que aconteceu: a agência de viagens reservou para mim um hotel em Ericeira, mas eu disse para o agente que estava indo para Lisboa. O primeiro agente me mandou para uma sala, esperar por uma outra entrevista. Foram quase 12 horas de espera. Depois, fizeram um monte de perguntas, mas eu já sabia que não entraria. Fiquei uma noite no alojamento, que é na verdade uma prisão, e na manhã seguinte me mandaram de volta para o Brasil. Não acho que terem me barrado tenha sido errado, mas achei o tratamento muito desrespeitoso, eles humilham os brasileiros lá sem necessidade, debocham da gente justo em um momento em que as pessoas estão muito fragilizadas.

Como meu companheiro estava em Portugal, decidi tentar de novo. No Brasil, fiz um novo passaporte - porque eles marcaram o meu - e comprei passagem para Paris. Na imigração lá, entrei sem problemas. Fiquei quatro dias lá passeando, depois fui de ônibus para Portugal.

Foi fácil conseguir trabalho, mas estou com um contrato temporário até o final do verão, porque aqui é um lugar turístico. O plano agora é ir para Lisboa, para ter algo mais certo".

Golpe

'Fui enganada e agora tenho só 200 euros para recomeçar a vida'

34 anos, auxiliar administrativa

De Vitória (ES) para Santarém

Chegamos em Portugal no final do mês passado eu, esposo e dois filhos: uma menina de 4 anos e um menino de 13 anos. Estávamos entrando como turistas, mas nossa intenção real era ficar para morar aqui. Comprei passagens de ida e volta e a reserva do hotel com uma agência do Porto. Foi indicação de um pastor; ele disse que esse lugar vendia passagens mais baratas, que muitas pessoas da igreja dele usaram a tal agência.

Quando chegamos na imigração, o policial nos informou que as passagens de volta haviam sido canceladas e que não havia reserva em meu nome. Fomos interrogados por três horas, depois levados para um local onde ficaríamos "hospedados" até sermos colocados num voo de volta para o Brasil. Tiraram todos os nossos pertences; entramos apenas com a roupa do corpo. Só poderíamos fazer um telefonema de 5 minutos para alguém. Ficamos presos por 6 dias. O local tem dois quartos grandes; em um dormem os homens, no outro as mulheres. Minha família só podia se reunir na hora das refeições. Foram os piores dias que passamos.

Lá dentro conseguimos o contato de um advogado, que nos liberou no dia 1o. Trazíamos 3 mil euros; o advogado cobrou 2 mil euros para nos tirar de lá.

Como se não bastasse, nossas três malas sumiram. Ninguém sabe informar o que houve com elas, dizem que não há registro. Estamos com apenas com duas mudas de roupa cada um. Compramos comida, arranjamos uma casa e o que nos resta são 200 euros. Agora estamos a procura de trabalho.

Estadão
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