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Elis recriada com IA é como um holograma que não imprime realidade

O uso da inteligência artificial é controverso quando imagem recriada é de alguém que já partiu sem deixar consentimento para tal

5 jul 2023 - 09h20
(atualizado em 26/10/2023 às 17h21)
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Maria Rita e Elis Regina cantam juntas pela primeira vez na história com a ajuda de ferramentas de inteligência artificial em uma campanha publicitária
Maria Rita e Elis Regina cantam juntas pela primeira vez na história com a ajuda de ferramentas de inteligência artificial em uma campanha publicitária
Foto: Volkswagen/Divulgação / Estadão

"De repente, hoje de manhã, em São Paulo, o coração de Elis parou. Calou-se a voz e o Brasil começou a chorar", anunciou Sérgio Chapelin à frente do Jornal Nacional, da TV Globo, na noite de 19 de janeiro de 1982. A repentina morte de Elis foi uma dessas notícias que a gente não se preparou para ouvir. Um talento como o dela não podia sair de cena assim de uma hora para outra, sem aviso prévio e ainda deixando três filhos pequenos. Que peça horrível que o destino havia pregado em todos nós. 

Quando Elis partiu, sua filha caçula Maria Rita, fruto do casamento com o pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, tinha apenas quatro anos. Imaginar a menina, que até então se aninhava no colo da mãe, crescendo sem a figura materna dava contornos ainda mais tristes à partida precoce de Elis. Aos quatro anos, uma criança pode não entender o que é a morte. Mas ao crescer e tomar conhecimento do talento e da genialidade de quem se foi privado da convivência, a história é outra. No caso de Maria Rita, ser herdeira de Elis pesou. Ela chegou a hesitar em seguir a carreira artística por causa disso. Com um timbre de voz semelhante, Maria Rita deve ter sonhado inúmeras vezes com a possibilidade de cantar ao lado da mãe, considerada uma das maiores intérpretes que esse país já viu.

Até que o dia em que algum criativo da publicidade teve a ideia de juntá-las no comercial que comemora 70 anos da Volkswagen, quatro décadas depois da morte de Elis, graças à inteligência artificial. No filme publicitário, Maria Rita se reencontra com a mãe, cada uma pilotando um modelo de Kombi, enquanto fazem um dueto de "Como Nossos Pais", canção de Belchior imortalizada pela voz de Elis e que foi escolhida para abrir o lendário álbum "Falso Brilhante"(1976).

Antes de haver inteligência artificial, o reencontro musical possível entre filhos e os pais que partiram era como o de Nat King Cole e a filha Natalie. Transformado em holograma, o cantor apareceu ao lado de Natalie num dueto da canção "Unforgettable". No entanto, com o comercial da Volkswagen é diferente. A cena que assistimos, a de Elis ao volante de uma Kombi vintage cantando um de seus maiores sucessos, nunca existiu. A Elis da deepfake é um rosto inserido no corpo de numa dublê, mas que exibe seu sorriso característico e move os lábios em perfeita sincronia com o áudio da versão original da música. Pelo menos, está mais claro que Elis nunca protagonizou essa cena. Até porque, tecnicamente, não é tão perfeita assim. 

O mesmo não aconteceu quando "Roadrunner", o documentário sobre o chef de cozinha Anthony Bourdain, foi lançado nos Estados Unidos, em 2021. O diretor Morgan Neville só assumiu que tinha usado o recurso de deepfake para recriar a voz do chef celebridade, morto dois anos antes, após a repórter da revista New Yorker indagá-lo sobre uma cena que a deixou intrigada. Na tentativa de reviver Bourdain, o diretor inseriu no filme uma frase que nunca foi dita pelo chef, despertando um debate sobre os limites da ética. Afinal, Bourdain teria aprovado o uso do recurso se pudesse ser consultado? As pessoas próximas a ele foram categóricas em dizer que ele não teria achado legal o uso de deepfake. Coincidência ou não, Roadrunner não fez uma longa carreira. Nem chegou ao streaming daqui. 

Mesmo com a comoção causada pelo reencontro de Maria Rita com a mãe, fica a pergunta se Elis teria aprovado o uso de sua imagem. A mesma Elis de "O Bêbado e o Equilibrista" toparia estar associada a uma marca de automóveis como a Volks, conhecida colaboradora do regime militar e ainda envolvida em acusações de tortura e trabalho escravo? 

Elis era uma artista de opiniões fortes. Lutou como pôde pela integridade de sua vida artística. Apesar de ter sido obrigada a fazer coisas na carreira pelas quais se arrependia, não se deixava dominar facilmente pelas pressões do mercado. Comprava suas brigas junto a poderosas gravadoras multinacionais. Por causa de sua coragem, conseguiu tirar da prisão a amiga Rita Lee, presa pelos agentes da repressão. 

Se Elis estivesse viva, teria completado 78 anos no último mês de março. Quem sabe ainda poderia estar cantando assim como seus amigos e parceiros de geração Gil, Caetano, Chico Buarque e Maria Bethânia.

Mas a ela não foi dado esse direito. No belo documentário "Elis e Tom", que deve estrear em setembro nos cinemas, o diretor e ex-empresário da cantora, Roberto de Oliveira, relembra em depoimento que ela tinha muito receio de envelhecer. Sabia como ninguém a barra de ser uma mulher que teve que lidar frequentemente com o comportamento abusivo de muito homem no meio da música. Mesmo no controle da carreira, até hoje não é fácil para uma artista envelhecer diante do público. Madonna, aos 64 anos, foi parar na UTI de um hospital, porque, segundo amigos, submeteu seu físico a extenuantes horas de ensaio por temer a comparação com estrelas mais novas assim que saísse em turnê que comemora seus 40 anos de carreira. 

A Elis que acompanha a filha pela estrada é a jovem com o corte de cabelo 'pixie', a dos olhos que se espremem ao sinal da risada larga e contagiante. Mas, ainda assim, é como um holograma que não imprime realidade. A Elis real está nas imagens de arquivo e nos discos que deixou. É lá que encontramos a cantora cujas interpretações colaboraram para que a música brasileira fosse celebrada no mundo todo. Lá está a intérprete dona de um inacreditável alcance vocal, mesmo entre uma baforada e outra de cigarro. A artista inquieta que lançava compositores desconhecidos como Belchior e transformava a vida deles. A cantora que nos brindou com interpretações definitivas, entre elas "Como Nossos Pais". Em busca constante pela perfeição, Elis tinha pelo menos uma certeza: queira morrer sendo ela mesma. Disse isso em sua última entrevista, dias antes de seu coração parar de bater aos 36 anos. É da Elis autêntica que sentimos saudade. 

Fonte: Redação Nós
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