Descoberto ou esquecido? Como cemitério de escravizados com mais de 100 mil corpos foi achado em Salvador
Localizado este ano, o cemitério, que pode ser o maior do tipo na América Latina, consta em diversos registros históricos
Pesquisadores localizam em Salvador um cemitério de escravizados e figuras históricas que pode ser o maior da América Latina, ressaltando sua relevância histórica, religiosa e ancestral.
Seguida por uma intuição, Silvana Olivieri, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), se debruçou a pesquisar sobre um possível cemitério de escravizados em Salvador. O que a instigou foi uma passagem por Belém, no Pará, em que um cemitério similar existia onde hoje está a Praça da República.
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“Esse cemitério tinha sido soterrado por causa da urbanização, e é aí que entra a minha pesquisa”, conta ela, que voltou para Salvador com a pulga atrás da orelha: “Será que tem um cemitério similar na minha cidade e que eu desconheço?”.
Silvana, então, se pôs a pesquisar e, para sua surpresa, sim, havia registros históricos de um cemitério destinado a pessoas escravizadas, indígenas e indigentes na capital baiana, onde se estabeleceu o segundo maior porto de chegada de escravizados nas Américas.
“Mas esses estudos e trabalhos não diziam a localização do cemitério. Falavam apenas que ficavam no entorno de um espaço público aqui, do Largo do Campo da Pólvora”, explica.
O largo em questão fica a cerca de 150 metros, ou dois minutos de caminhada, da Santa Casa da Bahia. Foi no estacionamento da Pupileira, um complexo mantido pela instituição, em que as escavações encontraram registros do que pode vir a ser o maior cemitério de escravizados da América Latina.
Por uma sobreposição de mapas do século XVIII com imagens atuais de satélite, Silvana cravou a localização do cemitério. O que mais a surpreendeu, porém, é que isso só tenha vindo à tona agora.
“A partir daí, eu comecei a procurar a história da pupileira, do Asilo dos Expostos, do cemitério, comecei a cruzar e achei -- para mais uma surpresa minha --, trabalhos que relatavam que o cemitério ficava dentro desse imóvel e toda a história dele”, conta.
Silvana detalha que encontrou registros de que a Santa Casa administrava o cemitério, que foi desativado pouco antes de o terreno ser vendido. Quando a instituição compra de volta o terreno, em formato de uma chácara, instala um asilo onde era o cemitério e, por fim, acaba transformando o local no complexo da Pupileira.
Atualmente, na Pupileira, funcionam a Faculdade Santa Casa, o Cerimonial Rainha Leonor e o Centro de Memória Jorge Calmon.
Memória, religião e ancestralidade
Pelos registros históricos, Silvana e outros pesquisadores chegaram a algumas figuras importantes da História brasileira cujos restos mortais foram enterrados no cemitério de Salvador.
Ela cita o Padre Miguelinho, que nasceu em Natal (RN) e morreu em Salvador, em 1817, tendo sido levado do Recife (PE) para a capital baiana após ser preso durante a Revolução Pernambucana. Participantes das revoltas dos Búzios e dos Malês também estariam no cemitério esquecido.
O dia em que as escavações começaram, inclusive, foi marcado para 14 de maio, em referência à data em que quatro homens africanos, nomeados no Brasil como Pedro, Jorge, Gonçalo e Joaquim, foram fuzilados no Campo da Pólvora, por terem integrado a Revolta dos Malês. Seus corpos também teriam sido enterrados no cemitério.
“A gente está usando três bases de historiadores para fazer o trabalho, com as citações, com toda essa seriedade que a gente entende que pesquisa precisa”, afirma Silvana.
Ela explica ainda que há uma coleção de livros na Santa Casa, chamada de Livros de Banguê, que registram o sepultamento de pessoas escravizadas entre os séculos XVIII e XIX. A Santa Casa descreve que Banguê era o nome do esquife em que o corpo da pessoa escravizada falecida era conduzido até o local da sepultura.
Para além do marco histórico que o cemitério representa, ainda há a sua relevância religiosa e de ancestralidade. Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito da Ufba, reflete sobre o fato de hoje o local sobre onde está o cemitério ser utilizado para celebração de casamentos e festas.
“Nós estamos falando de um cemitério que funcionou por cerca de 150 anos, onde podem ter sido sepultados escravizados africanos e seus descendentes, que se encontra no coração da cidade sem que ninguém saiba”, afirma. “A sociedade brasileira e baiana conseguiu silenciar e invisibilizar esse espaço”, complementa.
Samuel ajudou Silvana na realização de um dossiê com todas as informações sobre o cemitério para buscar junto ao Iphan apoio institucional para realizar a escavação na Pupileira.
No dia 26 de maio, o Ministério Público da Bahia divulgou ter oficializado um pedido à Santa Casa para que preserve o local das escavações. Na ocasião, também foi divulgado que as primeiras ossadas foram encontradas e a estimativa é que 100 mil pessoas tenham sido enterradas ali.