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"A cultura racista me fez esconder o meu cabelo"

Empoderamento pessoal de mulheres negras que fizeram transição capilar, têm efeito social contra o racismo e o branqueamento.

15 set 2022 - 05h00
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"Já tive chefe que pediu para eu alisar o cabelo para participar de reunião com cliente importante",disse a produtora Camila Francini
"Já tive chefe que pediu para eu alisar o cabelo para participar de reunião com cliente importante",disse a produtora Camila Francini
Foto: Camila Francini / Arquivo Pessoal

Não é incomum encontrar uma mulher negra que passou a vida alisando o cabelo. Mas nos últimos anos, muitas delas têm encontrado na transição capilar um caminho de reconexão com a sua própria raça. É como se elas se tornassem mais pretas, ao assumirem a naturalidade de seus cabelos cacheados, crespos ou trançados. Neste 15 de setembro, Dia Mundial do Cabelo Afro, mulheres contam como redescobriram a sua negritude a partir da libertação de seus cabelos.  

Em um país marcado pela ideologia do branqueamento racial, a estética negra sempre foi alvo de ataques. O cabelo crespo é tido como inferior ao liso, que é reconhecido como o “cabelo bom”. A partir da naturalização dessa fala racista, pessoas negras foram ao longo do tempo, conduzidas a aderirem à químicas ou métodos para alisar ou “domar” os cabelos crespos. O processo é tão estrutural, que muitas mulheres nem percebiam o impacto desse pensamento, na negação do próprio cabelo. É o caso da moradora de Mogi das Cruzes, Vitória Moreira, de 34 anos, que começou a alisar o cabelo ainda na infância. “Antes de alisar, eu só usava o cabelo preso. Quando comecei, me sentia melhor, podia usar o cabelo solto, tinha mais opção de penteado. Eu nunca havia reparado que eu era uma das poucas meninas pretas na minha escola. Eu só me sentia bem de cabelo liso. Eu não conseguia me ver de trança, tinha medo de fazer e não achar legal, achar que não combinava comigo. Sempre achei lindo em outras mulheres negras, mas achava que não era pra mim”, destacou. 

"Agora ando de cabeça erguida, sou preta sim", diz Vitória Moreira, após usar tranças pela primeira vez
"Agora ando de cabeça erguida, sou preta sim", diz Vitória Moreira, após usar tranças pela primeira vez
Foto: Vitória Moreira/Arquivo Pessoal

Na época em que começou a alisar o cabelo,não havia chapinha elétrica e química. O processo era feito com uma chapa de ferro, com a base parecida com a de uma tesoura, aquecida no fogo. E demorava horas. Depois, veio a era da progressiva e da chapinha, mas o método - além de igualmente demorado e até dolorido - também começou a provocar dermatite no couro cabeludo. “Eu decidi colocar tranças porque não aguentava mais fazer progressiva. Não durava, muitos produtos machucavam minha cabeça, davam dermatite no couro cabeludo. Estava fazendo o procedimento a cada dois meses, o que não é indicado. Me sentia incomodada”. Com as primas trancistas, Vitória decidiu arriscar e está se amando. “Estou me sentindo muito conectada comigo mesma, não achava que isso fosse acontecer. Mas estou me sentindo mais preta. Antes eu não sentia toda essa negritude, agora ando mais de cabeça erguida. Sou preta mesmo, e sou assim”. 

O processo de conexão vai além da estética. Vitória, que até pouco tempo se autodeclarava parda, passou a se autodeclarar negra depois de começar a usar as tranças. “Antigamente, quando eu ia preencher algum tipo de cadastro, eu respondia que era parda, porque eu não me via como preta. Mas eu também nunca fui branca e isso eu sabia. Depois que fiz as tranças, comecei a colocar preta e sei que isso mudou sim alguma coisa em mim, na forma como me vejo”. 

Camila Francini passou a se amar mais com o cabelo natural
Camila Francini passou a se amar mais com o cabelo natural
Foto: Camila Francini/Arquivo Pessoal

Florescer para a negritude

A produtora audiovisual e diretora de arte, Camila Francini, de 33 anos, também passou a se reconhecer como uma mulher negra depois de passar pela transição capilar, que durou pouco mais de um ano e meio. Sendo a única criança negra na família, ela conta que passou por um processo de embranquecimento já na infância. “Minha mãe é branca e minhas primas mais próximas também. Eu via o cabelo liso delas e queria igual, porque minha mãe tentava de tudo pra eu me sentir bem, mas não sabia cuidar corretamente do cabelo crespo. Alisar,então, era na época a opção". Camila, começou a fazer progressiva aos 11 anos. "A cultura racista, esse pensamento enraizado de que o cabelo crespo precisa ser domado, me fez por muito tempo esconder o meu cabelo", destacou.  

Camila vem de uma família com situação financeira confortável. Estudou em boas escolas, nunca passou perrengue. Também convive em espaços predominantemente brancos e, por isso, não conseguia se questionar sobre a importância de evidenciar suas características de mulher negra nesses ambientes. Só depois de passar pelo processo capilar, é que a produtora se deu conta de que já havia sido alvo de racismo. "De um modo geral, as pessoas sempre tentavam me branquear. Mas depois que assumi meu cabelo, ficou mais difícil ignorar a minha negritude. Então uma vez esse chefe me pediu para que eu fizesse uma escova no cabelo antes de uma reunião com um cliente importante.Falei 'olha você contratou uma negra né? Então se você não quer que essa negra vá pra essa reunião, leve a produtora loira padrão.  Eu vou ficar exatamente onde eu estou e do jeito que eu estou, Se você quer que eu use uma roupa, um sapato social, eu tenho, mas o meu cabelo é o meu cabelo.  Eu vou deixar passar dessa vez.Numa próxima agente vai ter que resolver numa justiça'. Hoje eu enxergo que já passei por outras situações. 

Hoje, Camila atende grandes empresas, inclusive na indústria da beleza, onde avalia que houve avanços. "Eu acho que sou muito privilegiada em ter o trabalho que tenho e circular pelos meios que circulo, podendo ser eu mesma. Eu sei que essa não é a realidade de muitas mulheres negras. Mas assumir meu cabelo, me fez desabrochar em várias outras áreas da vida, inclusive a profissional. E não tem como passar pela transição capilar e não encarar isso como um movimento de resistência". 

Camila Francini, passou a se reconhecer como mulher negra, só depois da transição capilar
Camila Francini, passou a se reconhecer como mulher negra, só depois da transição capilar
Foto: Camila Francini/ Arquivo Pessoal
Fonte: Redação Nós
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