Silent Hill f: O renascimento de uma lenda do terror psicológico
No Japão dos anos 60, game revive sua essência perturbadora em um novo capítulo inesquecível
Poucas franquias no mundo dos videogames carregam um peso tão grande quanto Silent Hill. Por mais de uma década, o nome esteve associado mais à frustração do que à glória. Desde o morno Downpour em 2012 até o cancelamento traumático de P.T. – Silent Hills em 2015, os fãs conviveram com a sensação de que a série estava condenada ao esquecimento, presa em um limbo entre a nostalgia e a incerteza.
Mas a névoa voltou a se mover. Em 2024, o remake de Silent Hill 2 reacendeu as esperanças, lembrando ao público a força e o impacto emocional da franquia. Agora, apenas um ano depois, surge não apenas uma lembrança do passado, mas um capítulo inteiramente novo: Silent Hill f.
Confira a seguir o que esperar desse novo capítulo nesta série icônica dos videogames.
Um novo olhar para Silent Hill
Sob a responsabilidade da NeoBards Entertainment, conhecida por seus trabalhos com Devil May Cry HD Collection e Dead Rising: Deluxe Remaster, o jogo desloca a série para um cenário inesperado: o Japão dos anos 1960. Não é apenas uma mudança de endereço, mas uma reinterpretação da própria essência de Silent Hill.
Para guiar essa transformação, a Konami convocou Ryukishi07, célebre autor das visual novels Higurashi When They Cry e Umineko no Naku Koro ni. O resultado é uma narrativa impregnada 100% de horror psicológico japonês, onde o silêncio, o estranhamento e a culpa têm tanto peso quanto as criaturas grotescas.
Hinako Shimizu, a protagonista, encarna bem essa transição. Não é uma heroína clássica, mas uma adolescente marcada por fragilidades familiares e sociais, cujos dilemas internos tornam o terror ainda mais pessoal. Quando a névoa toma a pacata e fictícia cidade de Ebisugaoka, o ordinário se dissolve em pesadelo — e o jogador sente, a cada passo, que a fronteira entre realidade e alucinação nunca foi tão tênue.
A escolha de ambientar a trama em uma cidade rural japonesa no meio de montanhas, inicialmente causou estranhamento: a série, afinal, sempre esteve associada à icônica cidade americana envolta em neblina. Mas logo fica claro que o nome “Silent Hill” não se limita a um local específico — ele é, antes de tudo, um estado psicológico, uma manifestação coletiva de traumas, dores e segredos.
Ebisugaoka é, por si só, um personagem. Suas ruas estreitas, templos tradicionais e campos de plantação criam um cenário belo, mas ameaçador. O uso do mapa, com as clássicas marcações da série e sem muitas explicações detalhadas, reforça o sentimento de desorientação, enquanto a icônica névoa retoma seu papel como metáfora do desconhecido.
E o mais intrigante é como o jogo desperta no jogador aquela constante sensação de desconfiança: suspeitas sobre personagens que talvez escondam algo, diálogos que parecem inocentes mas escondem segundas camadas, e a eterna dúvida sobre o que é real e o que é projeção psicológica - algo que o terror japonês sempre trabalhou muito bem. É Silent Hill em sua essência: pregar peças em sua cabeça e fazer você duvidar de tudo.
O peso das escolhas
Se a narrativa é marcada pela vulnerabilidade, a jogabilidade não fica atrás. O combate em Silent Hill f não é fluido ou estiloso; ele é pesado, truncado e até desconfortável. Hinako improvisa armas — canos, foices, marretas — que se desgastam rápido, e cada confronto parece mais uma luta desesperada pela sobrevivência do que um momento de triunfo.
O sistema de vigor e a barra de sanidade reforçam essa lógica. Cada golpe exige energia, cada esquiva precisa de precisão milimétrica, e a instabilidade psicológica da protagonista se reflete em sua eficácia contra os inimigos. Não há glamour aqui, apenas a tensão crua de quem luta para não sucumbir. Muitas vezes, o jogador deverá escolher entre se arriscar e lutar, ou simplesmente tentar fugir - e nem sempre essa decisão terá um bom resultado no final.
Os enigmas, por sua vez, recuperam o DNA da série, mas com forte inspiração no folclore e cultura japonesa. Eles não são apenas quebra-cabeças: são rituais narrativos, que misturam lógica, símbolos e uma carga opressora de estranheza. O episódio dos espantalhos no campo aberto, em especial, é um exemplo claro de como a simplicidade pode se transformar em desconforto puro quando o ambiente conspira contra o jogador.
Um dos elementos mais marcantes é a forma como o jogo incorpora as lendas sobre raposas espirituais. Essas criaturas, conhecidas como kitsunes ou associadas à divindade Inari, ocupam um papel central no imaginário cultural do Japão.
Tradicionalmente vistas como mensageiras dos deuses e protetoras de templos, as raposas podem ser tanto símbolos de prosperidade e sabedoria quanto figuras ambíguas, capazes de enganar e amaldiçoar. Essa dualidade — entre o sagrado e o malévolo — reforça a atmosfera de incerteza, em que cada encontro com esses símbolos desperta a dúvida: trata-se de uma bênção ou de uma ameaça?
A distorção do familiar
O "Outro Mundo" sempre foi um dos símbolos de Silent Hill, e aqui ele assume um caráter ainda mais perturbador. Em vez de fábricas enferrujadas ou hospitais decadentes, encontramos versões corrompidas de templos, santuários e campos rurais. O familiar é distorcido até se tornar irreconhecível, e os monstros refletem isso: figuras que parecem bonecos quebrados, espantalhos animados pela névoa, amalgamas de rostos que se fundem em pesadelos visuais.
Os chefes, por sua vez, elevam esse desconforto com lutas que alternam entre ação direta e jogos psicológicos. Uma batalha lembrava uma brincadeira de pega-pega macabra; outra exigia planejamento de recursos e domínio das mecânicas de vigor.
Essa estética não apenas enriquece a ambientação japonesa, mas amplia o alcance do horror da série. Silent Hill, afinal, nunca foi sobre um lugar fixo: é uma metáfora para dores humanas, capaz de assumir qualquer forma.
O poder do som e da imagem
Nada disso funcionaria sem a trilha sonora — e é justamente aqui que Silent Hill f brilha ao trazer de volta Akira Yamaoka, o compositor responsável por alguns dos temas mais memoráveis da série.
O músico mais uma vez combina delicadeza e brutalidade, criando melodias que acalmam apenas para, em seguida, despedaçar o silêncio com músicas e ruídos ensurdecedores. É música como terror psicológico, uma extensão invisível do pesadelo, e agora também com elementos da cultura japonesa, dialogando com a nova ambientação.
Visualmente, o jogo também impressiona, mesmo rodando em um PlayStation 5 padrão. Mais do que realismo, há intenção estética: a neblina que se mistura ao pôr do sol, as flores vermelhas que embelezam e apavoram ao mesmo tempo, os detalhes nos cenários que reforçam a sensação de um mundo prestes a colapsar. O resultado é uma atmosfera que oscila entre o belo e o grotesco, sempre em busca de desequilibrar o jogador.
A dublagem em japonês dá peso dramático e autenticidade à narrativa, enquanto a excelente localização em português garante acessibilidade sem perder o tom sombrio do texto original, sem precisar recorrer a traduções literais ou "adaptações abrasileiradas" que poderiam soar artificiais. São detalhes que mostram cuidado em cada camada da experiência.
Por fim, um detalhe que aumenta bastante a longevidade da experiência é o sistema de múltiplos desfechos. Silent Hill f conta com cinco finais distintos, cada um revelando nuances diferentes da história de Hinako e do mundo ao seu redor.
Após concluir a campanha pela primeira vez, o jogador tem a chance de seguir pistas e orientações para desbloquear os demais desfechos, o que incentiva a rejogabilidade e mantém o mistério vivo. Essa estrutura garante que, mesmo após os créditos iniciais, ainda haja muito a descobrir — e muitas horas adicionais imerso nos horrores e revelações que a trama reserva.
Considerações
Mais do que um novo capítulo, Silent Hill f se apresenta como uma reinvenção consciente da franquia. Ele não busca apenas repetir fórmulas antigas, mas reinterpretá-las sob outra lente cultural e estética, mantendo o espírito perturbador que tornou a série um ícone do horror psicológico.
A ambientação japonesa dos anos 60 amplia o conceito de Silent Hill como uma manifestação mental, emocional e simbólica, não apenas como uma cidade, permitindo explorar novas culturas, épocas e mitologias sem perder os elementos que consagraram a franquia. O resultado é uma obra que respeita o legado, mas ousa apontar para o futuro.
Mais uma vez, Silent Hill mostra que o verdadeiro terror não está apenas nos monstros grotescos, mas naquilo que eles simbolizam — traumas, medos, culpas e dores que o ser humano carrega.
Silent Hill f estará disponível em 25 de setembro para PC, PlayStation 5, e Xbox Series X|S.
Esta análise foi feita no PlayStation 5, com uma cópia do jogo gentilmente cedida pela Konami.