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'Brasil fez abolição incompleta', diz presidente da Ponte

Sebastião Arcanjo é o único negro entre os presidentes dos clubes da Série A e B e acredita que o racismo se tornou natural no Brasil

1 jul 2020 - 23h08
(atualizado em 2/7/2020 às 08h27)
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O presidente da Ponte Preta, Sebastião Arcanjo, sabe que é uma raridade em meio aos dirigentes brasileiros. Tiãozinho, como é conhecido, é o único presidente negro dentre os clubes da Série A e B e espera aproveitar o momento, em que manifestações antirracistas ganham mais força a cada dia, para fazer com que o assunto ganhe a importância que merece e as pessoas passem a discutir mais o tema e enfrentá-lo. O dirigente chega a dizer que há uma "abolição da escravidão incompleta" no Brasil.

Sebastião Arcanjo, mandatário da Ponte Preta, e Ricardo Moisés, presidente do Guarani, se reuniram com o prefeito de Campinas, Jonas Donizette, nesta quinta-feira (Foto: Divulgação/Ponte Preta)
Sebastião Arcanjo, mandatário da Ponte Preta, e Ricardo Moisés, presidente do Guarani, se reuniram com o prefeito de Campinas, Jonas Donizette, nesta quinta-feira (Foto: Divulgação/Ponte Preta)
Foto: Gazeta Esportiva

Em forte entrevista ao Estadão, Tiãozinho mostrou personalidade e levantou assuntos que muitas vezes são deixados de lado ou tratados com indiferença por boa parte dos brasileiros. O dirigente assumiu o cargo no começo do ano e decidiu apostar na pluralidade de etnias e gênero na diretoria da Ponte. Sua briga não é só contra o racismo. No total, são cinco negros, dois japoneses e uma mulher em sua diretoria, todos no comando. O presidente diz, dentre outras coisas, que o racismo é algo normal no Brasil e que muita gente tem dificuldade para aceitar que é racista. Ele lamenta que o País tenha escondido o assunto por tanto tempo.

Você já disse que pretendia democratizar a diretoria da Ponte e dar espaço para diversas etnias e maior espaço às mulheres. Como está essa mudança?

Adotamos o critério da pluralidade étnica e racial e contemplando a questão de gênero. O desafio é que ainda a maior parte da diretoria é composta por homens e pretendo aumentar a representação feminina na nossa diretoria. Estávamos aguardando algumas mudanças no estatuto, mas o coronavírus fez parar tudo. Neste momento, temos cinco negros, contando comigo, além de uma mulher e dois japoneses.

O que pensa sobre os movimentos antirracistas pelo mundo?

Aquela cena da morte do George Floyd criou mobilizações que serviram para colocar o racismo em pauta, no centro do debate do mundo. Isso dá para tirar de positivo nisso tudo. Outra coisa é que esses movimentos trouxeram artistas e intelectuais para a discussão e é muito bonito ver a juventude participando. Inclusive, pessoas que não são negras liderando movimentos e servindo como escudo humano de quem seria o objeto da violência mais convencional da segurança pública, o negro. Outro efeito é que isso tudo pode criar um processo de formação da polícia para criar cultura que desfaça a ideia de que a população negra é criminosa em potencial.

Sente que isso também pode acontecer no Brasil?

Provocado por esse tsunami internacional, o Brasil vai precisar se posicionar. Essa adesão à causa e aos movimentos se dá por conta de nos sentirmos envergonhados com a forma que lidados com o racismo. Temos um jeito cordial de tratar o racismo para quem não é negro, mas para quem é negro, o racismo nunca foi cordial. Chegou a hora de dar um passo a frente, sair da indignação e partir para ações mais concretas. Não só no futebol, mas aprofundar a adversidade nas empresas, peças publicitárias e em todos os setores. Sabe aquela coisa do Carrossel Holandês (seleção da Holanda na Copa de 74), de que todo mundo marcava e atacava? Então, precisamos fazer isso. Explorar todas as áreas e ter um olhar mais periférico para o racismo.

Você é o único presidente negro entre os times da Série A e B e existem pouquíssimos dirigentes negros no futebol. Você vê isso como racismo?

Creio que exista um outro ponto, que acaba caindo no racismo. Geralmente, os jogadores, principalmente os negros, são levados precocemente a fazer uma escolha: estudar ou jogar futebol. O cara recebe o primeiro salário e vai quase tudo para ajudar a família e assim vai por muito tempo. É comum aqueles que vêm de camadas mais pobres, quando conseguem um rendimento maior, carregarem a família nas contas. Isso não é só no futebol, em outras áreas acontece o mesmo. Você acaba pressionado e comprometido com esse apoio de ajudar a família e não consegue ter a opção de estudar, porque precisa trabalhar para colocar comida em casa. Não dá para conciliar o futebol com os estudos, em razão de viagens, treinos e concentração. Agora, estamos começando essa coisa de cursos online e isso pode ser uma saída para essa geração que vem vindo. Seria interessante aproveitar as novas tecnologias para se preparar visando o pós-carreira.

Você assumiu a presidência da Ponte neste ano, mas antes passou por cargos no clube. Sofreu preconceito em alguma conversa com dirigentes ou empresários?

Sim, claro. Quer dizer, isso não deveria ser normal, mas é a realidade. Alguns brasileiros não foram educados para compartilhar os mesmos espaços de poder com pessoas que não vieram da mesma posição social, econômica e étnica. Temos na Ponte uma tradição de inclusão, e isso ajuda no enfrentamento, mas não estamos imunes. Quando anunciamos a nova diretoria, com vários negros, teve um conselheiro que fez um comentário nas redes sociais dizendo que achava que a nova diretoria não seria composta por gente. Ele foi afastado do cargo, mas infelizmente não é o único caso.

Machuca saber que isso é algo normal para algumas pessoas, né?

Incomoda, claro, mas a verdade é que o Brasil tem uma longa divida com os negros e isso não vai acabar de um dia para o outro. Fizemos no Brasil uma abolição da escravidão incompleta. O negro nunca ficou livre, de fato. Continuamos presos no preconceito. E o que houve após a abolição foi uma substituição da mão de obra escrava por uma mão de obra imigrante. Ainda temos uma conta enorme para pagar com a população negra a médio e longo prazo. A curto prazo, a violência e a omissão incomodam muito. O Brasil escondeu o racismo durante muito tempo e vendemos para o mundo a ideia de que somos todos iguais. Durante a ditadura militar, o racismo era até proibido de ser discutido. Fomos discutir recentemente, no fim da década de 80.

A censura não permitia?

Exato. O racismo não é um problema biológico, é um problema político. Meus filhos, eu e todos que foram vítimas de algum tipo de preconceito, tiveram seus momentos de sentar no canto, procurar um ombro amigo e chorar de vez em quando, porque só quem sentiu na pele a dor do racismo sabe o que é isso. Tem o momento de expressão coletiva, mas tem o seu momento de individualidade. O racismo é aquele adversário que te pressiona e te faz jogar na retranca para não tomar o gol. Às vezes, ele te atinge de uma forma que faz você perder um jogador importante, mas você precisa se manter forte. Nossa estratégia é tentar transformar a luta de uma forma que você não possa se tornar uma presa fácil e não deixe o adversário chegar ao gol.

O futebol tem ligação forte com os negros. Boa parte dos craques atuais e do passado é negro. Mesmo assim, ainda vemos casos de racismo. Como explicar isso?

Acontece que a gente sempre está preocupado com o racismo do vizinho. Muitas pessoas não percebem que são racistas. É comum associar o racismo como um problema dos Estados Unidos ou da África do Sul, por exemplo. Historicamente, se criou uma cultura no Brasil de que não havia racismo e isso foi passado de geração para geração. O Brasil tem uma naturalização do racismo. É comum ver pessoas falando que não são racistas, mas dizendo coisas racistas, fazendo piadas, brincadeiras, dizendo coisas como 'ele nem parece que é negro', 'negro de alma branca'. Isso provoca um efeito psicológico em algumas pessoas que elas não conseguem entender que isso é racismo. Isso fica muito evidente no futebol.

Você acha que os atletas precisam se posicionar mais?

Creio que sim. Os atletas têm se manifestado sobre temas, podemos dizer, mais leves, mas que não são menos importantes, só para deixar claro. Por exemplo: solidariedade aos heróis da saúde. Muitos atletas publicaram coisas nas redes sociais e é válido e merecido o apoio. Mas é preciso se posicionar em assuntos mais polêmicos. Todos nós esperamos por isso e devemos aproveitar que hoje temos liberdade para se manifestar. Tem de falar sobre racismo, fome, miséria... A questão é que quando você se coloca na posição de negro ou defende a causa, você entra em um debate em que muitas vezes o atleta não quer se expor. A atitude do Botafogo, com faixas de apoio antirracista, a Mercedes, que vai correr de carro preto, e o Lewis Hamilton participando de movimentos são exemplos de coisas que devem ser seguidas.

Estadão
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