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Pendurados no teto

Verdadeira âncora fiscal do País deveria ser a sinalização clara de solvência do setor público no longo prazo

27 out 2020 - 04h10
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Nas últimas semanas temos assistido a um debate sobre as regras fiscais no Brasil. De um lado, alguns analistas apontam, corretamente, que o abandono do teto dos gastos pode ter um impacto muito negativo sobre as expectativas e, portanto, sobre os juros de longo prazo e a capacidade de rolagem da dívida pública. Em contrapartida, outro grupo de analistas indica, também corretamente, que seria importante ter alguma margem fiscal para não travar a demanda na saída da crise e, principalmente, para permitir um desmonte ordenado do benefício extraordinário concedido na pandemia.

Obviamente, eu sei que as duas posições são inconsistentes. Mas onde está a inconsistência? Ela está no fato de que a manutenção do teto se tornou a âncora fiscal do País, quando a verdadeira âncora deveria ser a sinalização clara de solvência do setor público no longo prazo, sem recorrer a aumentos continuados da carga tributária.

A percepção de que há um risco efetivo de perda de controle da trajetória fiscal tem um impacto muito negativo sobre o crescimento, e coloca um risco real de recrudescimento da inflação - não por um desequilíbrio entre demanda e oferta, mas pela perda de confiança na moeda nacional. De modo semelhante, a percepção de que a única maneira de garantir a solvência do setor público é por meio de um aumento recorrente da carga tributária também tem um impacto muito negativo sobre o crescimento, pois torna muito incerto o retorno sobre os investimentos.

Se queremos racionalizar o teto dos gastos, teremos de enfrentar questões como a reforma administrativa.
Se queremos racionalizar o teto dos gastos, teremos de enfrentar questões como a reforma administrativa.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil / Estadão

Para sair desse impasse, seria fundamental sinalizar que há condições críveis de equilíbrio fiscal no longo prazo, e que essa solvência não depende de um crescimento continuado da carga tributária. Mas isso é muito difícil no Brasil por dois motivos: por causa da existência de regras que levam à expansão automática dos gastos governamentais e por causa do baixo crescimento estrutural de nossa economia.

A agenda de solvência fiscal passa, portanto, por dois eixos. Em primeiro lugar, por medidas que limitem a expansão das despesas públicas de forma consistente. Não acho que o modelo atual do teto de gastos seja o ideal, pois ele joga todo o ajuste para categorias de despesas "não protegidas", como investimentos e até mesmo despesas básicas de custeio. Mas a única forma de flexibilizar de forma inteligente o teto dos gastos é reduzindo o grau de rigidez à baixa das demais despesas, especialmente despesas de pessoal e benefícios previdenciários e assistenciais. Se queremos racionalizar o teto dos gastos, necessariamente teremos de enfrentar questões como a reforma administrativa, e até mesmo - em situações excepcionais - a garantia de correção pela inflação dos benefícios previdenciários e a irredutibilidade dos vencimentos dos servidores públicos.

O objetivo dessas medidas não é interditar o debate democrático sobre a expansão das políticas públicas, ainda que financiadas por um aumento da carga tributária. É, isso sim, evitar que a rigidez das despesas atuais impeça a discussão racional sobre políticas públicas. Não podemos depender de um aumento crescente da carga tributária para manter o status quo.

Em segundo lugar, é preciso avançar com a agenda de reformas que ampliam o potencial de crescimento do País. Quanto mais o País crescer, menor o risco de termos de recorrer a medidas drásticas de contenção de despesas. Nessa agenda, destaca-se a reforma da tributação do consumo - mudança que, isoladamente, tem o maior impacto sobre o Produto Interno Bruto (PIB) potencial no médio prazo. Mas há outras mudanças importantes que afetam positivamente a produtividade e a segurança jurídica, especialmente na área regulatória. No longo prazo, a qualidade da educação é a agenda mais relevante.

Com o avanço nessas duas frentes - limitação racional da expansão das despesas e aumento do potencial de crescimento -, abre-se o espaço para discutirmos racionalmente a gestão anticíclica da política fiscal. Enquanto isso não acontece, seguimos pendurados no teto.

*DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL

Estadão
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