Diversidade como 'hype' travou mudança que precisávamos nas empresas, diz especialista em governança
Viviane Elias avalia que, no Dia Internacional da Mulher Negra, lembrado nesta sexta, não há o que se comemorar diante da baixa presença dessas profissionais nos conselhos brasileiros
A baixa presença de profissionais negras nos conselhos das empresas brasileiras faz com que o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, lembrado nesta sexta-feira, 25, não seja uma data para comemoração, mas para reflexão. O ponto de vista é levantado pela professora Viviane Elias, conselheira e especialista em gerenciamento de riscos e crises corporativas, gestão de operações e controles internos.
Para ela, o ponto chave dessa reflexão está em uma constatação: houve muitas empresas que adotaram políticas de diversidade por hype (termo referente a uma tendência momentânea) e não por intencionalidade, sem ações concretas para ascensão e atuação das mulheres em cargos técnicos e de deliberação.
Em setembro de 2024, um mapeamento realizado pelo Estadão mostrou predominância branca e masculina nos conselhos de administração das companhias de capital aberto presentes no Idiversa, índice que destaca as empresas com mais diversidade entre as listas na B3. Na composição dos colegiados, 75,6% dos conselheiros eram homens e 90,7% eram brancos.
Um estudo divulgado nesta sexta-feira, 25, pelo Mover, movimento pela equidade racial com mais de 50 empresas associadas, também mostra que a chance de uma mulher negra ter cargo de liderança é cinco vezes menor do que de uma funcionária branca.
Abaixo os principais trechos da entrevista:
Quando pensamos na data desta sexta, o Dia Internacional da Mulher Negra, há o que comemorar no Brasil quando o tema é mulheres negras nos conselhos?
Eu substituiria o "comemorar" por "refletir". A palavra é reflexão. Reflexão sobre como nós ocupamos essas cadeiras de maneira estratégica, mas nem sempre com a ocupação das intencionalidades de quem nos chamava para participar desse processo. Como atuante na causa racial desde 1997, eu posso falar, nos últimos anos, nós tivemos avanços, mas esses avanços foram pífios. Não com a necessidade que precisávamos de reparação histórica no mundo corporativo. Agora, temos que pensar de forma estratégica. Em alguns pontos, talvez o mundo corporativo tenha permitido que algumas pessoas furassem essa bolha, mas furar a bolha também requer papel e responsabilidade. Das conselheiras negras que chegaram lá, quantas efetivamente trouxeram as pessoas pretas com elas? Das conselheiras pretas que permanecem nessa cadeira, quantas estão em cadeiras técnicas e não somente cadeiras ligadas à diversidade e inclusão? O quanto efetivamente tiveram oportunidades para demonstrar a habilidade técnica delas nessas cadeiras? Se eu responder de forma fria se nós temos o que celebrar, vou falar que não, mas penso que esse é o ano da reflexão, e uma reflexão ligada a uma outra palavra que é a intencionalidade.
Sobre a intencionalidade, em que sentido a sra. traz essa provocação?
Muitas pessoas que estão em cargos de tomada de decisão hoje entenderam que não era uma questão de moralidade falar da questão racial dentro do mundo corporativo, mas que era uma questão de negócios, de dinheiro. E quando estamos falando de dinheiro, a palavra intencionalidade vem muito mais ligada à ação do que à proposição. O que eu quero dizer? É fazer por uma questão de negócios, mas com a intencionalidade de ser perene e não ser sazonal. Essas pessoas, que eu chamo de aliados estratégicos, são normalmente pessoas não negras, mas que não querem aparecer. Esses aliados de verdade que tão fazendo a intencionalidade com ação ligada a negócios são aliados que não aparecem, não têm o protagonismo, colocam as pessoas pretas (nos cargos) principalmente pelas suas habilidades técnicas e resultados, e que, muitas vezes, dão protagonismo para essas pessoas pretas em lideranças estratégicas dos seus negócios. Hoje, nós conseguimos nomear essas pessoas. São pouquíssimas. Para alguns segmentos, são raríssimas. Um segmento, por exemplo, que lamentavelmente não acompanhou essa demanda, foi o segmento de seguros. Se pararmos para pensar, mesmo no quando a diversidade ainda estava no hype, você vê pouquíssimas posições de mulheres pretas no ramo de seguros com intencionalidade. E automaticamente esse reflexo permanece até agora. Quando olhamos segmentos (como esse), começamos a entender que a intencionalidade parte de aliados estratégicos, mas ela parte para ação. É esse botão que temos que ligar para conseguir termos a possibilidade de mulheres pretas mostrarem a sua eficiência, a sua eficácia dentro das cadeiras de conselho e de liderança. E isso é falar de negócios.
Quando a sra. fala de quando a diversidade estava no hype, pressupondo que não está mais, essa queda no hype é perigosa diante do pouco avanço?
Na minha opinião, o hype é que destruiu a mudança que precisávamos. O hype criou lacunas de ego, criou lacunas de ausência de escuta ativa de pessoas pretas e mais dividiu as ações corporativas do que somou. Se você me perguntasse o que, dentro da análise de riscos de diversidade, foi um dos culpados pela trava no avanço que precisávamos, eu diria que foi o hype. Porque, dentro do mundo corporativo, criamos uma categoria muito perigosa que são as subcelebridades do mundo corporativo, e muitas delas se preocuparam mais em trazer mensagens prontas do que provocações para resolução. De 2019 para cá, eram pouquíssimas as empresas que não tinham ou um "novembro negro" ou um "julho das pretas". E eram sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos executivos, sempre os mesmos nomes. (Na época dos) layoffs (demissões em massa) em grandes startups, ninguém parou para pensar que a grande maioria das pessoas demitidas eram pretas. Pelo motivo simples: as pessoas pretas continuavam na base dessa organização. Dentro dessa necessidade absurda de estar no hype começamos a criar alguns conflitos internos, alguns ligados a hard skills, outros a soft skills, e muitos ligados ao colorismo. Pretos retintos não foram visualizados. Em 2025, a gente tem que "bugar" o sistema. E para "bugar" o sistema, eu preciso saber como o sistema funciona, para eu entender a falha, poder destruir e poder construir um sistema novo. Esse sistema novo perpassa muitas etapas, como políticas públicas e ações sociais.
Por um lado, o hype acabou impulsionando algumas carreiras de liderança. A problemática do hype seria, então, a ideia de que esse assunto 'não passa de um hype'?
Quando eu falo sobre o hype é que, de 2020 a 2024, não falar sobre a questão racial no mundo corporativo era estar fora do mainstream. Esse é o hype. Teve alguma coisa positiva no hype? Teve. Para mim, inegavelmente, foi a representatividade. Só que o hype foi uma cortina de fumaça. Porque (o mundo corporativo) deu a representatividade, mas nas suas condições: ou a representatividade baseada no que ele achava que era uma pessoa preta e viável, o colorismo, ou a representatividade no que ele achava que era tecnicamente viável, o tokenismo, ou a representatividade do que ele achava que é correto para o negócio naquele momento, o diversity washing (maquiagem da diversidade). O que o hype trouxe de bom nessa representatividade não foi efetivo, justamente porque parou na intencionalidade. Nós não nos dividimos em castas como pretas do jurídico, pretas do marketing, pretas do secretariado, pretas do conselho. Em nenhum momento entendemos que a causa era única e a luta deveria ser junto. Os grandes eventos agora, quando têm mulheres, têm (apenas) uma mulher preta. Esse é um quesito do hype. Pessoas pretas nunca foram historicamente ensinadas a se reunirem. Isso é o sistema sem hackear. Nós só mudamos o nome, mas continuamos no mesmo modus operandi. Porque a intencionalidade desse guarda-chuva não aconteceu. E quando ela acontecia, as pessoas técnicas muito viáveis para ocupar esses cargos foram embora do Brasil. As que ficaram hoje continuam lutando de alguma maneira, mas sem a força do hype.
Nessa linha de raciocínio, estamos então vivendo um hype oposto, considerando um caminho de desmembramento da agenda, principalmente vindo de uma força de políticas globais de Donald Trump e de uma série de empresas multinacionais sediadas nos EUA encerrando ou revendo suas políticas de diversidade?
As políticas "anti-woke" viraram uma desculpa perfeita para quem não tinha intencionalidade de fazer as coisas acontecerem e estavam só no hype. No Brasil, tivemos um efeito mais suave, mas teve esse efeito. Pegamos um problema importado para justificar o que já não se queria fazer. Então, há muitas empresas no Brasil que ainda estão fazendo. Mas não temos a quantidade, a celeridade e a intencionalidade necessárias para entender que nós não estamos dormindo em berço esplêndido. E há vários indicadores que estão na nossa cara. Veja as 10 últimas grandes premiações executivas. É impossível não ter uma pessoa técnica preta, homem ou mulher, que não poderia ser escolhido (nessas premiações). Até o ano passado, as pessoas pretas se posicionavam publicamente contra isso. Note que o "silêncio ensurdecedor" deste ano fala muito. Pessoas pretas hoje que tem suas cadeiras de liderança estão preocupadas em permanecer nesse cargo. E mesmo que a retaliação da empresa não aconteça publicamente (se ela se posicionar), ela sabe que vai ter uma retaliação moral e silenciosa dentro da empresa, visto que a grande maioria das empresas sequer, durante toda essa onda de hype, tiveram treinamento, por exemplo, de compliance anti-discriminatório.
Por que essa ausência de mulheres negras nos conselhos não entrou ainda na conta da gestão de riscos variados, como reputacional, nos espaços de governança das empresas?
Não entrou porque a matéria de gestão de riscos nas grandes empresas do Brasil, infelizmente, está voltada para os riscos financeiros ou legais. Quando são trazidos riscos sociais, riscos ambientais e, por incrível que pareça, riscos de governança, as grandes empresas tratam esse ponto como um "deixa para o ano que vem". Muitas vezes, a demanda de gerenciamento de risco dessas empresas ocorre muito por conta de licença, de certificação, de obrigatoriedade documental. Quando falamos de risco reputacional, eventualmente em uma gestão de crise, há uma zona de conforto dos CNPJs, que acham que efetivamente (as pessoas) vão esquecer. Então, no que tange a riscos de diversidade e inclusão, uma empresa que acredita que a memória é curta, (é não lembrar) que o brasileiro é muito engajado. E mesmo que hoje vivamos em um Brasil polarizado, quando mexe com os nossos afetos, nós somos três, quatro, cinco vezes mais engajados.
Nos últimos anos, positivamente, tivemos mais oportunidades para executivas negras terem formação e estarem aptas para integrarem conselhos. Se não é possível usar mais a formação como argumento, o que falta para mudança na prática?
Vai mudar na prática quando as empresas começarem a entender que a ausência de representatividade racial nos seus quadros de liderança e nos seus conselhos vai doer em duas coisas: inovação e dinheiro. E, quando eu falo isso, pode parecer frio, mas temos que fazer um acordo com a realidade: as empresas precisam dar lucro para sobreviver. E quando elas contratam pessoas pretas para uma cadeira de conselho, essas pessoas vão trazer vivência, o que efetivamente vai trazer inovação para os processos de negócio. E quando se traz inovação, se gera renda. Sendo direta e objetiva, enquanto as empresas negligenciarem o poder da representatividade nas suas posições de comando, elas vão continuar tendo resultados pífios. O mercado, principalmente para conselheiros, começa a passar por uma fase de resultado, no qual as pessoas estão fazendo o modus operandi da revolução industrial: corta a base, infla o meio e sobrecarrega o topo. Essa lógica de revolução industrial não serve mais para a lupa de 2025. Para parar com isso, é preciso ter pessoas diversas, especificamente no caso do Brasil, em que 56% da população é autodeclarada (preta ou parda), para falar com o público alvo que, muitas vezes, nem se identifica com a negritude, mas sabe que precisa de coisas de negritude. É sobre dinheiro que eu estou falando, sobre conhecer esses riscos, sobre ter proposições para além do óbvio. Hoje ninguém inova no mundo para ser disruptivo. A grande maioria das inovações é de sobrevivência. (Ninguém) sabe mais de sobrevivência do que a população preta, que vem sobrevivendo desde 1500 em escassez.