Sucesso de ‘Tremembé’ e ‘Os Donos do Jogo’ ressalta os problemas das novelas da Globo
Séries criadas para grupos de assinantes conseguem ofuscar a teledramaturgia feita para milhões de brasileiros
O bom desempenho de ‘Tremembé’ (Prime Video) e de ‘Os Donos do Jogo’ (Netflix) — capazes de furar a bolha do streaming e alcançar forte repercussão na imprensa e nas redes sociais — expõe as fragilidades estruturais do modelo de novela praticado pela Globo.
Esses sucessos do streaming não são fruto do acaso. Começam pelo destemor narrativo: apostam em histórias sem autocensura, lidando de forma frontal com decadência moral, violência e sexualidade. Em vez de suavizar conflitos para agradar a um público amplo e heterogêneo, assumem riscos claros — e são recompensadas por isso.
Outro ponto decisivo é o ritmo. Os roteiros avançam com agilidade, sem a tradicional enrolação do folhetim diário. Cada cena cumpre uma função dramática, alimenta o suspense e constrói expectativa. O resultado é um envolvimento contínuo, excitação que o espectador da TV aberta sente cada vez menos, cansado de tramas que demoram semanas para se deslocar do lugar.
O fascínio pelo universo do crime também pesa. Inspiradas em personagens reais ou fictícios, essas produções exploram a ambiguidade e transformam figuras à margem da lei em protagonistas carismáticos, muitas vezes sedutores. Trata-se de um imaginário que dialoga com a curiosidade e as contradições do público contemporâneo — algo que as novelas, presas a arquétipos previsíveis, raramente conseguem explorar sem medo.
Enquanto isso, o folhetim tradicional segue oferecendo conflitos atenuados e discursos pedagógicos já assimilados. A novela parece partir do pressuposto de um espectador desatento, apostando em diálogos explicativos e situações reiteradas, quando boa parte desse público demonstra maior sofisticação e repertório audiovisual.
O contraste evidencia uma mudança profunda no consumo de ficção: o espectador está mais exigente quanto à linguagem, à coerência temática e à complexidade dos personagens, e menos tolerante a fórmulas recicladas.
As séries criminais falam com um Brasil urbano, hiperconectado e menos moralista, enquanto a novela ainda dialoga com um país que já não existe da mesma forma.
O êxito de ‘Tremembé’ e ‘Os Donos do Jogo’ não decreta o fim da novela (gênero historicamente central na cultura brasileira), mas lança um alerta inequívoco.
A Globo continua poderosa, com elenco, autores e estrutura incomparáveis. O problema não é falta de recursos, e sim de reinvenção. Enquanto investir na repetição de modelos consagrados ao invés de apostar na renovação estética e narrativa, seguirá perdendo relevância cultural, mesmo que conserve números razoáveis de audiência.
O público já mostrou que mudou. Resta à teledramaturgia decidir se acompanhará essa transformação — ou se continuará, à distância, observando o sucesso alheio.