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Em novela, mãe e filho têm crise de culpa por serem ricos

Cena notável de ‘Vale Tudo’, de 1988, ressalta o abismo social do Brasil de ontem e de hoje

6 jul 2018 - 15h18
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Confuso como todo pós-adolescente, Tiago (Fábio Villa Verde) está incomodado por viver como um típico herdeiro da alta sociedade carioca, cercado de luxo e proteção, enquanto seus amigos enfrentam uma realidade dura num bairro periférico.

Helena (Renata Sorrah) e Tiago (Fábio Villa Verde): alienar-se ou sofrer pela pobreza alheia?, eis a questão
Helena (Renata Sorrah) e Tiago (Fábio Villa Verde): alienar-se ou sofrer pela pobreza alheia?, eis a questão
Foto: TV Globo / Divulgação

O rapaz que lê Proust e ouve ópera decide se aconselhar com a mãe, Helena (Renata Sorrah), que também nasceu milionária. O diálogo entre os dois marca um momento especial da novela Vale Tudo, exibida originalmente há 30 anos e agora reprisada no Canal Viva.

“Mãe, você alguma vez na vida já sentiu vergonha de ser rica?”, questiona o estudante. Helena responde que, desde os 13, 14 anos, sente culpa pelo padrão abastado dos Roitman: “Tenho vergonha que um empregado da casa descubra quanto custa um quilo de camarão que a gente come, um litro de uísque escocês, um conhaque, um pote de mostarda alemã... O que tem segurado a minha cabeça é a análise”.

Tiago quer uma solução para não ficar emocionalmente tão mal em relação à pobreza do mundo. Sua mãe cita como alternativa a alienação adotada por tia Celina (Nathália Timberg), que faz caridade e distribui presentes a todos ao seu redor para se sentir menos culpada pelo dinheiro que possui.

“Ela não vê o Jornal Nacional para não se aborrecer”, conta Helena. “Só lê revista onde a vida é glamourizada.” 

“Você tem que ser amigo, se aproximar de quem tiver vontade, independente (sic) de classe social porque senão a tua vida vai ser muito falsa. Aparentemente mais fácil, mas só na aparência”, orienta a artista plástica ao filho. 

“Se jogar fora todo o dinheiro que eu tenho adiantasse alguma coisa, eu te juro, já teria jogado o meu há muito tempo”, desabafa.

No final da cena de 4 minutos (uma eternidade em comparação ao ritmo de edição das novelas contemporâneas), Helena insiste com Tiago: “Você tem que ficar perto da vida, transando essa culpa, vulnerável, tentando ser justo, ser honesto e, principalmente, tentando ser feliz”.

No mesmo capítulo, Raquel (Regina Duarte) passou por autocontestação semelhante, apesar de ser pobre. Ao ganhar dinheiro vendendo sanduíches e quentinhas, a batalhadora cozinheira começa a sentir culpa por “subir na vida”. Seu objetivo, diz ela, é apenas ser feliz, e não enriquecer. Uma utopia raramente vista nos folhetins de hoje.

As reflexões escritas pelos autores Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères três décadas atrás estão mais atuais do que nunca: o País evoluiu, mas a diferença de renda entre ricos e pobres continua abissal.

A maior parte das telenovelas apresenta personagens em busca do enriquecimento rápido (e ilícito) e não propõe discussão a respeito da distância e dos conflitos morais entre os ricos, a classe média e os pobres.

Personagens como Tiago e discursos coerentes como o de Helena são raros. Ao exibir tramas com disputa por poder e dinheiro, a partir da esperteza de alguns personagens e a honestidade de outros, Vale Tudo vai além de apenas entreter: conscientiza o telespectador a respeito da gritante desigualdade que nos afeta desde sempre. 

É novela com cara de vida real. Uma produção de 1988 que espelha o Brasil do momento. Vale Tudo não envelheceu, e o País evoluiu muito menos do que poderia.

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