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A luta de um modelo contra a imagem do homem negro sem afeto

Carlos Cruz usa o sucesso na moda para desconstruir a hipersexualização da figura masculina e atacar o racismo

1 nov 2020 - 08h13
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Descoberto dentro de um ônibus em Salvador (BA), Carlos Cruz, de 26 anos, decidiu que a carreira de modelo não serviria apenas em benefício próprio. Ele usa a experiência no concorrido universo da moda e a visibilidade na mídia para combater a discriminação racial e a fetichização excessiva do homem negro.

“Enquanto alguns negros forem escravos, ninguém será totalmente livre”, afirma o modelo Carlos Cruz
“Enquanto alguns negros forem escravos, ninguém será totalmente livre”, afirma o modelo Carlos Cruz
Foto: Alex Lyrio/Acervo Pessoal

Além disso, incentiva ‘new faces’ (iniciantes na profissão) a desenvolverem maior consciência social e senso coletivo. Para Carlos, o racismo e a desconstrução dos estereótipos históricos em relação às pessoas negras são uma luta de todos.

Nascido e criado numa periferia, ele fez campanhas para marcas conceituadas como Samsung, Track & Field e Banco do Brasil, e apareceu nas badaladas ‘Vogue Itália’ e ‘Desnudo Magazine’. Estava de passagem aérea marcada para a China, com agenda cheia de trabalhos, quando estourou a pandemia de covid-19.

Você sonhava ser modelo?

Eu queria ser policial militar, por influência de meu pai. Na adolescência aquele desejo saiu de mim, vi que não era o que eu realmente gostava. Me formei técnico de Radiologia e Contabilidade. Foi como contador que trabalhei a maior parte de minha vida. Nunca sonhei ser modelo. A sociedade prega que o negro não tem o estereótipo de beleza para o mercado. Então eu não me via como modelo. Costumo dizer que não foi a moda que me escolheu, eu é que escolhi a moda para quebrar esse paradigma de que o negro não é bonito.

Quem descobriu seu talento?

Fui descoberto pelo produtor Sivaldo Tavares, de um projeto social chamado PJT Models (agência de Salvador que treina e lança modelos negros no mercado). Eu estava em um ônibus, ele me viu e perguntou se eu aceitava fazer umas fotos e se queria ser modelo. Era um mundo totalmente diferente do que eu vivia. Filho de militar, criado ‘preso’ por meus avós... Fugi muito tempo daquele convite. Até que o produtor me encontrou no Facebook e disse que eu poderia levar minha família para acompanhar o ensaio. Fiquei apaixonado pelas fotos. Ali descobri o amor pela moda. Faço meu trabalho com amor.

Sofreu episódios de racismo velado ou explícito no meio da moda?

Nunca sofri o racismo estrutural no trabalho, mas enquanto alguns de nós forem escravos, ninguém de nós será totalmente livre. Eu posso não sofrer racismo, mas se meus amigos negros sofrem, então eu sofro também. A história do negro é coletiva, assim como sua dor.

Carlos Cruz em foto publicada na revista ‘Ela’, do jornal ‘O Globo’, durante desfile na Casa dos Criadores e em campanha de moda
Carlos Cruz em foto publicada na revista ‘Ela’, do jornal ‘O Globo’, durante desfile na Casa dos Criadores e em campanha de moda
Foto: Gleeson Paulino e Reproduções

O homem negro é alvo de interpretações pejorativas e tem seu corpo muito sexualizado na mídia. Já se sentiu explorado?

O negro é visto como o cara do sexo bom, que pega, faz e acontece. Esse estereótipo criado pela sociedade destruiu o homem negro no Ocidente, porque fez do negro um homem sem afetividade, sem vínculo amoroso. No livro ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, o escritor Frantz Fanon fala da desconstrução do homem negro, da importância de voltarmos às raízes e termos o lado afetivo. O negro deveria ir à África para reaprender o que era pregado por nosso povo. Nós, negros, precisamos esquecer essa questão da sexualidade e nos reinventarmos. O homem negro deve se ligar à inteligência, ao caráter, ao amor.

Em qual momento você despertou para a importância de praticar ativismo contra o racismo e apoiar outros modelos negros?

Desde que minha carreira começou, quando eu escolhi a moda. Minha carreira é política. Uma ferramenta de luta para que eu mostre que o negro pode chegar a qualquer lugar. Uso meu exemplo para defender os meus iguais. A referência (de negro na moda) que eu buscava não existia, então resolvi que eu teria que ser essa referência. Ser um espelho para outras pessoas. Através dessa arte que é moda, consegui tirar pessoas do tráfico, livrar gente da morte. Dei voz a uma classe que sempre dá show e quase nunca é aplaudida.

Considera-se uma espécie de mentor de jovens modelos em início de carreira?

Sou ‘paizão’. Sempre converso com eles, aconselho, explico a realidade da vida. Eu construo pontes indestrutíveis. A melhor forma de vencer uma batalha é usar o conhecimento. Meus avós diziam que podem tirar tudo de você, menos o que você aprendeu.

É verdade que, em seus primeiros meses em São Paulo, trabalhou como motorista de aplicativo para se manter?

Quando cheguei, o meio da moda não me absorveu rapidamente. Não tive grande demanda de trabalho. Precisei procurar algo para conciliar com a carreira de modelo. Financiei um carro para rodar pela Uber. Supriu minhas necessidades. Hoje consigo me manter só com a moda. Com fé, a gente transforma uma simples mesa em banquete. Foi graças ao meu trabalho como modelo que juntei dinheiro para dar o último presente em vida para minha avó, uma geladeira, quinze dias antes de ela falecer. A moda me dá essa oportunidade de presentear quem eu amo e poupar um pouco para o futuro.

O modelo Carlos Cruz faz da visibilidade na moda um meio de incentivar outros jovens a correr atrás de seus sonhos
O modelo Carlos Cruz faz da visibilidade na moda um meio de incentivar outros jovens a correr atrás de seus sonhos
Foto: Adriano Soares e Reproduções

Acha que movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) terão força para continuar? No Brasil, falta maior união e mobilização dos negros para reivindicar respeito e igualdade de direitos?

O Brasil tem o dobro de mortes violentas de negros em relação aos brancos, e nunca houve essa revolução. O povo brasileiro está muito acostumado a valorizar as pessoas e os movimentos de fora. Hoje temos maior consciência, mas ainda precisamos mudar muito. Esse movimento nos permitiu ter voz, gritar. O negro vem sofrendo há muito tempo, não somente com a violência, mas também com a falta de oportunidades.

Quais suas referências de personalidades negras?

Minhas maiores referências são meus amigos. Hoje, em Salvador, muita gente sonha ser modelo por conta da nossa trajetória. Cito alguns modelos, como Rayane Brown, Léo Hellber, Gabriel Pitta, Marcelo Lima e Lucas Evangelista. Todos saídos de periferias, como eu, e que ajudam a construir pontes. Gosto também do cantor de rap Djonga. Importante valorizar aqueles que a gente acompanhou de perto o processo de construção. Nós, brasileiros, temos a mania de valorizar muito os artistas estrangeiros, eu já sofri com essa manipulação e jurei que não iria cometer esse erro novamente. Então esses são meus super-heróis.

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