"Não imaginei que voltaria a sentir esse tesão", diz Kisser sobre novo projeto
Líder do Sepultura lança primeiro disco do De La Tierra, banda formada por integrantes de grandes nomes do rock latino, como Maná e A.N.I.M.A.L
Depois de quase três décadas de estrada, Andreas Kisser imaginava que sua carreira seguiria caminhando sem surpresas, apenas focada como sempre no Sepultura e mantendo alguns projetos paralelos como uma espécie de hobby, tão somente para se divertir. Não passava pela cabeça do guitarrista de 45 anos um dia voltar a ter aquele sentimento tão próprio de um adolescente sonhador em um período no qual a música não era trabalho, mas, sim, amor, e bastava estar envolvido nela para se considerar realizado. Mas seu novo projeto, a super banda De La Tierra, formada por integrantes de grupos de grande sucesso na América Latina, provou a ele que sempre é possível encontrar uma nova paixão.
"Esse desafio de fazermos uma banda com a cara do Sepultura e do Maná, cantando em português e espanhol, é uma coisa nova pro mercado. Mas não só para o público, também para nós, como músicos com quase 30 anos de estrada que já fizeram quase tudo, ter essa oportunidade de fazer alguma coisa nova é fantástico", disse em entrevista ao Terra Kisser, que lança nesta terça-feira (14) o primeiro disco de estúdio do De La Tierra, Maldita Historia, no qual canta e toca guitarra. "Nunca imaginei sentir essa coisa de como quando eu tinha 15 anos de novo, de ter uma banda nova, de ter aquele tesão de curtir um negócio totalmente sem saber o que vai acontecer, mas se dedicando simplesmente a ele só por amar o que faz."
O pensamento não se limita a ele. Com line-up ainda formado por ele Alex "El Animal" Gonzalez, do Maná, na bateria; Andres Gimenez, do A.N.I.M.A.L. e D-Mente, que divide com Kisser guitarras e vocais; e Sr Flavio, do Los Fabulosos Cadillacs, no baixo, o grupo garante ter sido formando com base somente no sentimento de se tocar. E, por isso mesmo, se vê como muito mais do que um simples projeto, mas como uma verdadeira banda, com planejamento de turnês e o real desejo de quebrar barreiras entre Brasil e países de língua hispânica, onde ainda hoje é difícil o intercâmbio cultural. "Acreditamos muito que chegou o momento de as bandas perderem a vergonha e passarem a cantar em seus idiomas nativos", afirmou Gimenez. "Para nós, é muito simples e honesto cantarmos na língua do lugar onde nascemos."
Confira a seguir a entrevista com Kisser e o argetino Andres Gimenez sobre o quarteto.
Terra - Como começou o De La Tierra?
Andrés Gimenez - Alex (Gonzaléz, do grupo mexicano Maná) e eu tínhamos a ideia de fazer uma banda, mas não sabíamos bem por onde começar, quem chamar. No início, só queríamos tocar juntos. O tempo passou, pensamos muito a respeito e, há dois anos, decidimos finalmente nos dedicar a isso. Chamamos um baixista, que aqui em Brasil vocês seguramente não conhecem, chamado Sr. Flávio, da banda argentina Los Fabulosos Cadillacs, muito grande em toda a América Latina, e ele se atraiu pela ideia. Aí me veio a ideia de chamarmos mais um guitarrista - e logo pensei no Andreas (Kisser). Mas, infelizmente, como é bastante comum, naquela época ele estava muito ocupado com o Sepultura e isso quase nos fez deixá-lo de lado. Mas o Alex decidiu insistir, conversou com o Andreas e ele em seguida disse sim'. Isso foi incrivel, porque acabamos conseguindo fechar a banda com os quatro integrantes que queriamos.
Em uma entrevista recente, Andreas disse que via o De La Tierra como uma oportunidade de quebrar as barreiras entre Brasil e o restante da América Latina. A presença dele na banda tem esse intuito, de fazer um grupo com letras majoritariamente em espanhol chegarem ao público brasileiro?
Andreas Kisser - Eu acho que sim. Essa característica brasileira é uma coisa que realmente me incomoda. O Sepultura faz vários shows na América Latina e nós vemos nesses giros tantas coisas que não chegam na gente. Os próprio Los Fabulosos Cadilacs, por exemplo, não conhecê-los por aqui é simplesmente vergonhoso. É uma banda gigantesca, com uma influência fantástica na cultura argentina e latina em geral, e aqui eles não aparecen simplesmente por causa da língua. Nesse sentido, somos muito fechados, o Brasil mais exporta do que importa a cultura. Um exemplo muito claro disso pode ser visto mesmo em Portugal, o país que veio aqui, nos "descobriu", mas que não consegue levar sua cultura para a gente. Diferente do que ocorre por lá, onde vemos muita coisa da cultura brasileira. Então acho que o De La Tierra tem a oportunidade de quebrar um pouco essa barreira. A gente viu os Titãs, os Paralamas do Sucesso, que trouxeram um pouco mais dessa cultura latina para o Brasil, e agora temos o De La Tierra, uma banda que canta em espanhol, mas também tem algumas coisas em português, podendo fazer o mesmo. É bem uma banda em "portunhol" mesmo (risos) e ela fala das nossas coisas daqui, fazendo um metal de qualidade que aborda coisas nas quais acreditamos.
Mas, além disso, também existe o fato de os fãs do estilo darem muito mais espaço para bandas focadas na língua inglesa, não?
Kisser - Mas parece que isso mudou. Acho que o Rammstein é um belo exemplo de que uma língua não é barreira para se conseguir sucesso internacional cantando em outra língua. Quer dizer, é um grupo que canta em alemão e com incrível visibilidade no mundo inteiro. Para mim, o De La Tierra tem um pouco essa possibilidade. E a gente é sempre movido por desafios. Fiquei muito feliz com o convite e aqui estamos, com disco pronto, gravadora forte (Roadrunner Records), booking manager forte, o clipe já saiu. E estamos ajeitando as datas pra curtir o De La Tierra também ao vivo e fazer o melhor que a podemos enquanto tocamos nossos outros projetos. Por enquanto, tudo está fluindo muito bem.
No Brasil esse preconceito com o que não é em língua inglesa não é ainda maior?
Kisser - Sim, mas também parece estar mudando. Eu tenho um programa de rádio e vejo cada vez mais bandas nacionais cantando em português - ou gritando em português (risos). É aquela coisa, o próprio Sepultura cantava em inglê desde o começo, mas era aquele inglês brazuca, cheio de sotaque, que deu um tempero diferente pra gente. Mas quando começamos, no meio da década de 1980, era praticamente impossível fazer música pesada em português. Hoje em dia está bem mais acessível. Não sei como vamos ser aceitos no Brasil, é difícil dizer, até porque, para o rock, hoje em dia está dificil. Você vê o Samuel Rosa reclamando da situação, e nomes como Michel Teló, Anitta e Naldo ganhando caminhões de dinheiro. Nada contra os estilos desses caras, mas isso acaba tomando conta da mídia, ocupando todo o espaço do resto. Isso é muito ruim, porque o Brasil é multicultural, tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, mas só dão enfoque pras mesmas coisas. Então acho que esse desafio de fazer uma banda com o cara do Sepultura e do Maná cantando em português e espanhol é uma coisa nova pro mercado. Não só para o público, mas também para nós, como músicos com quase 30 anos de estrada que já fizeram quase tudo, ter essa oportunidade de fazer alguma coisa nova é fantástico. Nunca imaginei sentir essa coisa de quando eu tinha 15 anos de novo, de ter uma banda nova, de ter aquele tesão de curtir um negócio totalmente sem saber o que vai acontecer, mas se dedicando simplesmente por amar o que faz.
Gimenez - Cremos que, quando a pessoa expressa as coisas com a alma, com musicalidade, a língua passa para um segundo plano. Mas é necessário ser verdadeiro no que se faz. Escolhemos cantar em espanhol e português porque acreditamos muito que chegou o momento de as bandas perderem a vergonha e cantarem em seus idiomas nativos e para nós é muito simples e honesto cantarmos no idioma do lugar onde nascemos. É legal que respeitemos e exaltemos os idiomas latino-americanos.
Nos países hispânicos, essa barreira da língua parece não existir. Basta observar o número de bandas de metal bem-sucedidas que cantam em espanhol e compará-lo ao das que fazem o mesmo em português. Por que isso ocorre?
Kisser -
Acho que, por exemplo, na Argentina, na Espanha, rolou uma coisa mais política. Lembro que nos lançamentos de discos de bandas como Iron Maiden e Deep Purple, nas décadas de 1970, 1980, tudo era traduzido. Nada ia em inglês. Os títulos das letras, os conteúdos... E é uma coisa que pareceu ter sido forçada, simplesmente para reforçar o nacionalismo. Aqui no Brasil, no entanto, essa preocupação não existiu. Desde sempre recebemos a cultura americana, a europeia, de uma maneira mais aberta, sem contestação.
Gimenez - Mas existem os precursores e, hoje, ao menos para mim, muitas bandas de metal, se cantassem em português, conseguiriam conquistar o mundo. Meu amigo João Gordo, do Ratos de Porão, por exemplo. Ele sempre cantou em português e ainda assim conseguiu atravessar as fronteiras e tocar na Europa e em outros continentes, ganhando reconhecimento nos lugares mais impensados, nas décadas de 1980 e 1990. Os tempos mudam. Novas ideias são capazes de derrubar antigos paradigmas.
Então também há a intenção de levar o De La Tierra a países não latinos, certo?
Kisser - Sem dúvida. A ideia é justamente tocar em tudo quanto é lado. Queremos fazer shows em festivais como o Wacken (Open Air, na Alemanha), o Rock in Rio... A intenção é mostrar que temos a condição de falar em qualquer língua. É o que o Andres sempre diz: é o mundo latino. O brasileiro não se sente tão latino, por aqui esse é um lance mais ligado à geografia do País, pois culturalmente somos muito distantes do Chile, da Venezuela, da Argentina... É mais o futebol que realmente linka, que realmente une essas nações, e as históricas ditaduras, politicas que vivemos nas mesmas épocas. Apesar disso, temos mais coisas em comum do que imaginamos.
O De La Tierra já é tratado pela mídia especializada como uma super-banda. Vocês o veem dessa forma?
Kisser - Realmente, à primeira vista muita gente acha se tratar disso, de um lance com empresário por trás ou até um reality show que coloca músicos com história para tocar juntos. Mas não é nada disso. É uma coisa de músicos mesmo, uma ideia que não sabíamos no que ia dar e deu muito certo, porque temos feito com muita calma, tentando segurar a ansiedade tão própria de qualquer grupo em seus integrantes botem alguma fé. O lance é que o De La Tierra é muito mais do que um projeto. É uma oportunidade fantástica para todos nós que estamos envolvidos e a estamos aprendendo e crescendo muito com ele.
Esse rótulo gera uma ansiedade maior em vocês em relação ao que as pessoas esperam do trabalho?
Kisser - Não, nenhuma. Até porque estamos fazendo o que curtimos mesmo. A maneira como trabalhamos nos dá essa liberdade. O próprio nome, De La Tierra, foi uma coisa que a gente escolheu pra nos dar isso. É uma banda de metal, sim, essa é a intenção, mas o metal é muito amplo, podemos fazer o que quisermos dentro do estilo. Não queríamos achar um nome parecido com uma caveira, apocalipse, essas coisas, mas, sim, uma coisa mais próxima de nós mesmos, que mostra a nossa união, que fazemos uma música que curtimos e nada mais do que isso. Essa liberdade nos dá confiança e tranquilidade para fazermos só o que acreditamos mesmo. Mas a pressão do público e da crítica é boa, sempre bem vinda. Isso vai acontecer até subirmos no palco pela primeira vez, quando o pessoal nos ver tocando e começar a entender o que realmente é o De La Tierra.
Vocês fizeram tudo de forma independente e só depois foram atrás das gravadoras para a distribuição do material. Se o processo fosse outro, com os selos envolvidos desde o início no projeto, vocês teriam a liberdade que tiveram?
Kisser - Não. Se tivéssemos uma gravadora, um empresário ou uma empresa, seja de refrigerantes, de cerveja ou um canal de televisão com um reality show por trás, o De La Tierra não existiria. Essa banda só nasceu dessa forma porque amamos a música e, acima de tudo, a respeitamos muito, sem preconceitos, com a mente aberta. Isso nos une para conseguirmos o que pretendemos, que é romper barreiras. Além do mais, as gravadoras hoje em dia tentam ser também as empresárias das bandas. Não somente colocam o disco, mas também querem ter participação nos shows, no merchandise, em tudo, simplesmente porque os discos não vendem - e os lucros precisam vir de outros lados. Mas isso é uma coisa que não funciona para a gente, porque somos de uma geração que sabe como funcionam as coisas, e muito dessa estrutura de de empresariado a gente já tem. Essa liberdade, no entanto, veio com o tempo, a conquistamos com a estrada, com a experiência de trabalhar com várias pessoas diferentes e tudo o mais. E, hoje, temos condições totais de administrar nossa própria carreira.