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Aos 90 anos, Stephen Sondheim é um celeiro de criação

Compositor americano, autor de 'Company', reescreveu a história dos musicais, hoje considerados como uma arte maior

22 mar 2020 - 07h11
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O fato de Stephen Sondheim estar ainda em atividade é um sinal de que a Broadway continua a ser um celeiro de experimentação e disseminação de cultura importante no mundo. Aos 90 anos, completados neste domingo, 22, este compositor que reescreveu a história dos musicais e os inseriu definitivamente no conceito da "música séria", arte maior, ainda frequenta os ensaios de suas peças, dá indicações aos atores e inclusive participa de vários eventos em honra e homenagem a sua obra.

Para compreender a importância de Sondheim é preciso fazer um paralelo com outro nome da história do musical americano: Oscar Hammerstein. Que caminho teria seguido o musical americano se Hammerstein não tivesse injetado um sopro de mudança radical no musical Show Boat (O Barco das Ilusões) de 1927? Aquele espetáculo foi o grande divisor de águas do gênero, nada seria igual depois daquele Barco. A Broadway deixaria de ser apenas entretenimento leve e perfumado, baseado apenas na fruição de belas canções (grandes clássicos nasceram ali) e mulheres exuberantes, e passaria a refletir um pouco da história americana, tratar de assuntos relevantes como o racismo, a relação entre artistas e a clandestinidade de relações amorosas à parte das convenções civis e religiosas, e nasceria ali uma dramaturgia própria, com personagens coerentes, e a música finalmente integrada à ação de maneira orgânica e essencial. Tudo isso aconteceu antes da década de 30.

O espetáculo tinha música de Jerome Kern (já um nome consagrado por inserir na forma clássica das operetas os primeiros ecos do jazz e da música negra americana), com libreto e letras de Oscar Hammerstein II, o mesmo que posteriormente veio a se associar ao compositor Richard Rodgers e formar a mais importante dupla de criadores do musical americano - são deles Oklahoma!, O Rei e Eu, Carousel, entre outros.

Eis aí a razão do tedioso e escolástico introito acima: é justo Oscar Hammerstein II quem, décadas depois, se torna o mentor afetivo e artístico de Sondheim, incutindo no jovem pupilo as noções básicas da dramaturgia específica do gênero, fato que Sondheim ressalta como a gênese de sua identidade como compositor e homem de teatro.

Desde esta grande virada de 1927, a Broadway vem passando sucessivamente por diversas mudanças, menos ou mais radicais. O advento do rock & roll, os novos implementos técnicos como os microfones de corpo, a era dos efeitos visuais, entre outras coisas, fazem com que o gênero musical esteja sempre no limiar de pequenas revoluções. Mas nenhuma delas teve vulto artístico tão significativo quanto a entrada em cena, nos anos 50, de Stephen Sondheim. Inicialmente como letrista de West Side Story (música de Leonard Bernstein), mas logo assume voz própria e única, partindo para musicais onde será o criador de música e letras.

A "grande largada" de Sondheim é Company, de 1970. Ali, estava começando o que veio a ser conhecido como "concept musical", um largo passo adiante na dramaturgia do gênero, onde a relação entre canção e enredo não se daria mais por caminhos apenas realistas e pragmáticos, mas por um tecido dramatúrgico bem mais esgarçado e não linear. No "concept musical" a música não necessariamente conta uma história ou narra um episódio da vida de personagens, mas comenta, enrodilha, transcorre numa camada que mergulha e sobrevoa o assunto da peça, chega a propor um conteúdo paralelo ao texto falado. No caso de Company, todas as canções tratam de um mesmo tema sob diversos pontos de vista: o casamento. É como se a ação se passasse dentro da mente dos personagens, como se seu subconsciente viesse à tona na forma de música. A partir de Company, o concept ganha espaço e outros musicais surgem seguindo a mesma linha, entre eles os hoje clássicos A Chorus Line e Nine.

Sondheim estava apenas começando, e o mundo dos espetáculos com dramaturgia e canções já era outro, tudo parecia vir com o epíteto de 'Antes e Depois de Sondheim'. Embora o próprio compositor rejeite as comparações de seu trabalho com a ópera tradicional, há diversos pontos de contato com o gênero em espetáculos como Sweeney Todd, Passion, e Into The Woods. A distribuição clara dos personagens por registro vocal, a valorização dos coros, e ainda a relação entre recitativo e canção mostram no mínimo um apreço do compositor pela forma operística.

Os musicais de Sondheim nunca foram exatamente sinônimo de sucesso. Alguns, como Anywone Can Whistle e Merrily We Roll Along, mal completaram um mês em cartaz. Mas todos, sem exceção, tornaram-se objeto de culto pelos amantes do gênero. Sua obra é constantemente revisitada em coletâneas, revues (espetáculos com canções selecionadas de musicais completos), e muitas vezes há maior interesse no material que foi cortado das montagens originais do que no que foi à cena.

Outro aspecto notável são os temas tratados por seus musicais. Desde a decadência do teatro de revista em Follies, passando pela "mania" que têm os americanos de assassinar seus presidentes em Assassins, até o sangrento teatro de Grand-guignol em Sweeney Todd, Sondheim nunca fez uma Broadway para famílias, nem preocupou-se em oferecer entretenimento para todas as idades. Seus espetáculos são adultos, discutem assuntos que escavam a superfície lisa da vida projetada e não vivida. Mesmo Into The Woods, que aparentemente é uma grande brincadeira com contos de fadas infantis, tem um segundo ato em que uma desconcertante reversão de expectativas transforma tudo numa complexa fábula de terror.

Conhecer a Broadway de Sondheim é conhecer um pouco além do glamour do musical americano. Não que ele negue o teatro de entretenimento e descontração; pelo contrário, Stephen Sondheim nos apresenta talvez um estágio menos imediato de diversão, mas com promessas de um prazer mais duradouro e saboroso que um simples lanche com guloseimas e refrescos. Sondheim é um prato de gastronomia sofisticada, deve ser apreciado pelas bordas, aos poucos, com estalar de língua a cada garfada e com direito à mais generosa soneca após o repasto. Ah, a sobremesa? Viver.

*É ATOR, TRADUTOR E PRODUTOR

Estadão
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