Luana Tolentino é doutora em Educação. Sua mãe só aprendeu a ler aos 70. Essa história virou livro
Mineira lança sua primeira obra para crianças, 'Mamãe Aprendeu a Ler', inspirada na trajetória de Dona Nelita, que morreu depois de realizar seu sonho; veja vídeo
Luana Tolentino não tem nenhuma recordação de brincar de boneca enquanto criança. Ela gostava mesmo de fingir que era professora. Passava o tempo dando aulas de mentirinha e ainda se lembra de como ficava fascinada com as letras e o conteúdo dos livros dos irmãos mais velhos. Quando decidiu que seria professora, e seguiu essa carreira, não foi surpresa para ninguém.
Luana, porém, foi além da sala de aula. Ela continuou estudando e se aperfeiçoando. Foi para a academia para pensar seu ofício e pesquisar. Fez mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dedicou-se à formação inicial e continuada de professores e ainda recebeu a Medalha da Inconfidência pelo governo de Minas Gerais.
Também escreveu livros, como Sobrevivendo ao Racismo: Memórias, Cartas e o Cotidiano na Discriminação no Brasil (Papirus) e Outra Educação é Possível: Feminismo, Antirracismo e Inclusão em Sala de Aula (Mazza).
Agora, voltando-se à menina que foi e à casa em que cresceu e que a preparou para a vida, ela estreia na literatura para a infância com Mamãe Aprendeu a Ler (Mazza).
Em todas as suas etapas acadêmicas, Enelita Canuto Teles dos Santos, conhecida como Dona Nelita, sua mãe, estava ao seu lado. Era comum que os convites de entrevista se estendessem às duas. E se acaso ela aparecesse sozinha em um evento, queriam sempre saber de sua mãe. Dona Nelita virou uma referência. O motivo? Decidiu aprender a ler com 70 anos.
Em Mamãe Aprendeu a Ler, Luana narra a infância da mãe e sua trajetória na Educação de Jovens e Adultos (EJA) de forma lúdica. Um dos momentos mais tocantes do livro é um trecho em que a escritora diz ter se sentido triste quando pediu para a mãe lhe ajudar a fazer uma lição de casa.
Luana comentou o momento durante a entrevista concedida por videoconferência ao Estadão: ela tinha 5 anos e havia pedido diversas vezes para que a mãe lhe ajudasse com o dever que ela não conseguia fazer. "Foi a primeira vez na minha vida que presenciei minha mãe chorar". Dona Nelita respondeu que não sabia.
"Foi uma coisa tão desesperadora. Eu chorava tanto, tanto, que rasgou a folha do dever de casa", diz. "Quando eu olho para isso hoje, é uma coisa muito dolorosa e eu fico pensando o quanto outras pessoas que, tendo acesso a essa história, vão se encontrar nela. Não é uma história só minha, não é uma história só da minha mãe. Quando eu tenho o direito de concluir e de prosseguir com os estudos, eu estou quebrando esse ciclo. E ainda vivi o suficiente para ver minha mãe aprender a ler."
O desejo de Dona Nelita
Dona Nelita frequentou a escola na infância por menos de dois anos. Décadas depois, realidades como a dela ainda são comuns no Brasil. Quase metade das crianças do 2º ano do Ensino Fundamental não consegue escrever bilhetes e convites, ler textos simples, tirinhas e histórias em quadrinhos, segundo dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) em julho.
Foi em parte por causa da filha que Dona Nelita voltou a pensar em estudar. "Esse desejo sempre existiu, mas foi 'colocado para fora' a partir do momento que comecei a levá-la para os ambientes que frequento, como universidades, feiras de livros, espaços de decisão política... Assim, esse mundo começa a ser o mundo dela também."
Dona Nelita disse que queria aprender a ler para saber mexer no celular e tirar fotos. No dia seguinte, Luana conseguiu matriculá-la na escola em que a mãe tanto queria estudar.
A trajetória de Dona Nelita na escola começou em fevereiro. Sua evolução foi registrada em programas de TV e documentários. Ela aprendeu a ler. Infelizmente, não chegou a se formar. Quatro meses depois, no dia 13 de junho, Dona Nelita morreu.
'Iluminação'
Luana Tolentino estava num táxi quando a história de Mamãe Aprendeu a Ler surgiu em sua mente. Foi, como ela chama, uma espécie de "iluminação" que teve após a morte da mãe.
"Quando me dei conta, já tinha título, já tinha texto, eu já tinha imaginado as ilustrações. Ele já nasceu um livro infantil", conta. "Quando cheguei em casa, só tive o trabalho de passar para o computador."
Mamãe Aprendeu a Ler tem ilustrações de Anna Cunha, renomada ilustradora que, assim como Luana, é belo-horizontina. A editora do livro, Mazza, é a mesma que lançou Conceição Evaristo, escritora que hoje é um dos pilares da literatura nacional contemporânea.
No livro, Luana se permitiu uma licença poética. Dona Nelita, na história, terá uma formatura em que estará "bem bonita". "Na realização dela, eu me realizei também", diz ao Estadão.
A escritora quer que Mamãe Aprendeu a Ler chegue em crianças e adultos que não conhecem bem realidades de mães como Dona Nelita. "Quando eu penso numa criança lendo, eu sempre penso na curiosidade que vai ser essa história: 'Como assim a mãe não sabe ler?'. Porque, no imaginário social, a mãe sempre lê. As primeiras histórias que nós ouvimos, ainda no ventre da nossa mãe, são elas que contam. Também quero que os adultos reflitam sobre o que acontece quando o direito à educação é negado."
Serviço - 'Mamãe Aprendeu a Ler'
- Autora: Luana Tolentino
- Ilustradora: Anna Cunha
- Editora: Mazza Edições (32 págs.; R$ 59)
- Lançamento: Flitabira, em Itabira (31/10), Conservatório da UFMG, em Belo Horizonte (8/11) e Livraria Megafauna (29/11)