Lady Gaga no Rio: o caos calculado de um espetáculo que entrou para a história
Mais que um show, o espetáculo da cantora em Copacabana foi um ritual coletivo de afeto, identidade e celebração para milhões de fãs de todo o mundo
Que tipo de artista consegue reunir 2,1 milhões de pessoas em um único show? Seria apenas o efeito de um evento gratuito ou estamos falando de algo maior — do peso de uma artista que já redefiniu os limites entre música, performance e ativismo cultural? Lady Gaga, com sua ópera futurista ao ar livre, provou que o que vimos no Coachella — um dos festivais mais exclusivos do mundo — não era o ápice, mas apenas um ensaio. E esse ápice aconteceu aqui, no Brasil.
O "Manifesto Mayhem" aterrissou no Rio de Janeiro com força total: mais monumental, simbólico e coletivo. Era mais que um show — era um ritual pop de escala planetária. Gaga entregou vocais impecáveis, pianos em chamas, coreografias afiadíssimas e, acima de tudo, uma mensagem clara: este momento é nosso. E foi mesmo. Do início ao fim, o Brasil se provou não só um dos países mais apaixonados por música, mas também um dos mais competentes em realizar eventos gigantescos com estrutura, segurança e, principalmente, um senso de comunhão.
Porque um evento desses só é possível aqui também por isso: pela maneira como o brasileiro vive o momento. Foi uma celebração coletiva, um encontro de gente disposta a dividir espaço, calor, cansaço e euforia para estar junto. E quem é Lady Gaga, senão a voz de todos que já foram reprimidos? Gays, mulheres, os "diferentões" de ontem e de hoje. Ela fala com quem foi excluído — e esse público respondeu com amor, entrega e presença.
Faz quase uma semana do show e não conheço ninguém, do VIP ao quinto telão da areia, que ainda não esteja extasiado. As pessoas chegaram cedo, outras à tarde, enfrentaram horas sob o sol. Apesar do cansaço, o ânimo prevaleceu. Os leques — segunda maior atração do evento — davam o ritmo entre uma música e outra. Do metrô à praia, o clima era de festa, de comunidade. Se dava para ver o palco? Nem sempre. Mas o lance era outro: cantar junto, se esgoelar, pular, vibrar. Se fosse só para ver, a gente assistia pela TV. Estar ali era viver, desconectar-se do mundo online e lembrar o que é sentir a música e fazer parte de algo maior. O perrengue faz parte, lógico — e todo mundo topou pagar esse preço com gosto.
É curioso pensar que um show desse porte talvez não tivesse o mesmo sucesso em outras partes do mundo. O Brasil tem know-how: sediou Copa do Mundo, Olimpíadas, recebe os maiores carnavais do planeta e atrai artistas internacionais há décadas. O "come to Brazil" virou meme por um motivo.
Meses atrás, num papo com um amigo britânico, comentei sobre o boato do show gratuito de Gaga. A resposta dele foi direta: "Isso jamais daria certo no Reino Unido". Não por falta de fãs, mas por falta de preparo — tanto do público quanto do Estado — para lidar com uma multidão desse tamanho. A ideia de caos era automática. E não dá para dizer que ele estava completamente errado: em muitos países da Europa e nos EUA, a combinação entre multidão, bebida alcoólica e segurança é uma bomba-relógio.
Aqui, a coisa funciona diferente. Sabemos nos mover no caos. A segurança foi robusta: revista em áreas específicas, câmeras por toda parte, drones com reconhecimento facial e atuação ativa da polícia. Isso não elimina riscos, mas prova que temos, sim, tecnologia, estrutura e capacidade de execução.
O maior tropeço, ironicamente, veio depois: a estação de metrô Siqueira Campos, a única a todo momento sinalizada para usar após o evento, virou um funil insuportável, com trânsito ainda funcionando e ambulantes atravessando com carrinhos em meio à multidão. Foi necessário fechá-la temporariamente para conter o fluxo. Um gargalo logístico que não estragou a noite, mas que precisa ser revisto.
Sabemos também que o investimento no evento gerou retorno concreto para a cidade. O turismo foi impulsionado, a rede hoteleira trabalhou com ocupação máxima, o comércio se manteve aquecido por dias e até quem nunca ouviu uma música da Gaga encontrou ali uma forma de lucrar. A economia criativa, nesse caso, foi além do esperado: teve gente vendendo o look de carne do VMA recriado em blusas, shorts e bonés. Teve leque personalizado e até saco de areia foi comercializado — para quem quisesse subir no muro e ter uma "visão privilegiada" do show. Isso, meus queridos, só o Brasil faz. Economia criativa que chama?
Outro destaque impossível de ignorar: a banda e os dançarinos de Lady Gaga. Em todos os cantos do palco havia um detalhe, uma performance paralela, uma janelinha viva dentro da ópera montada. O pianista num teclado 360º, criado pelo próprio, o baterista de apenas 24 anos detonando a cada batida, os dançarinos entregando tudo em cada segundo. Era um show à parte — um espetáculo dentro do espetáculo.
O que torna essa noite ainda mais emblemática é seu poder de atravessar gerações. Meu pai, que raramente termina um episódio de série sem dormir, assistiu tudo. No dia seguinte me disse: "Só não gostei daquele segundo ato, meio pesado, muita coisa de gente morta… mas o show foi ótimo!" Criei um Little Monster em casa sem querer?
Comparar com o show de Madonna no mesmo local um ano antes é inevitável, mas talvez injusto. Como a própria Gaga disse, enquanto Madonna canta e dança, ela canta, produz, toca instrumentos. Gaga foi mais contida nos looks? Sim. Mas contenção também comunica. Ela não precisa de exageros para ser revolucionária. Madonna é deboche. Gaga é caos e controle ao mesmo tempo.
No meio de tudo isso, Rio de Janeiro se reposiciona no mapa global como capital da música ao vivo. Eduardo Paes entendeu isso e apostou alto — e venceu. Agora o mundo olha para cá com outros olhos. Lady Gaga fez história no Brasil, e nós fizemos história com ela.
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