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Faça a coisa certa

Quase trinta anos depois de Faça a Coisa Certa, Spike Lee volta para sacudir a complacência de um verão americano

13 ago 2018 - 02h11
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Quase trinta anos depois de Faça a Coisa Certa, Spike Lee volta para sacudir a complacência de um verão americano. O novo filme do cineasta do Brooklyn, Infiltrado na Klan (Blackkklansman) estreou no primeiro aniversário do episódio de terrorismo racial em Charlottesville, uma ferida aberta que o nativista instalado no Salão Oval não se interessa em cicatrizar.

Em 1989, senti o frisson na plateia predominantemente branca de Manhattan com a história de tensão racial no bairro onde Lee cresceu. No sábado, não notei, no escuro, espectadores brancos no cinema do Harlem onde peguei a primeira sessão, ainda de manhã. Como em Faça a Coisa Certa, Lee encontra humor no racismo que denuncia. Mas as risadas que o diálogo provoca não saem com a gente do cinema porque os cinco minutos finais, com imagens retiradas do noticiário no último ano, lembram o que espera o público na calçada.

É importante destacar que o filme é baseado numa história real: nos anos 1970, Ron Stallworth se torna o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs. Trabalhando na divisão de inteligência, ele responde a um pequeno anúncio convocando para a Ku Klux Klan e recebe um telefonema do líder local do grupo racista que só quer ser conhecido como a "organização." Para se infiltrar como membro, ele recruta um colega branco, enquanto continua as conversas telefônicas com a Klan. A operação secreta impede que a KKK leve adiante ataques terroristas.

Uma das licenças da trama no filme é identificar o colega branco (anônimo no livro) como o judeu Flip Zimmerman, o que confere à história maior nuance sobre o racismo branco, assim como momentos de hilaridade, quando o brucutu da Klan, desconfiado, pede para ver se o pênis do policial é "circunstanciado."

Mas não são as caricaturas humanas atraídas pela Klan que assustam. Ao sair do cinema, notei que o presidente escolheu passar o primeiro aniversário de Charlottestville em companhia de uma gangue de bikers nacionalistas cuja aparência e slogans colados nas jaquetas os faria candidatos para o elenco de Blackkklansman. O que dá um frio na espinha é a previsão feita sobre outro personagem dolorosamente real, David Duke, o ex-grão mago que liderava a KKK no período dos eventos do filme. Duke trocou o robe e o capuz brancos pelo terno de deputado de 1989 a 1993 e foi um dos primeiros nacionalistas brancos a endossar o atual presidente, que não teve pressa em se distanciar dele. Em agosto de 2017, Duke foi a Charlottesville para a passeata dos neonazistas, que saudou como um marco para "tomar o país de volta." Num diálogo ominoso de Blackkklansman, o policial branco explica que o suave Duke percebeu que teria mais chances entrando para o mainstream da política até que um dia, quem sabe, os defensores da supremacia branca pudessem chegar à Casa Branca. A plateia à minha volta suspirou fundo neste momento.

O gênio do racismo normalizado entre parte do eleitorado trumpista escapou da lâmpada e não depende da reeleição do presidente para continuar dividindo o país. O submundo do nacionalismo branco, sabendo, como Duke sabia, que não seria um movimento de massa, não depende de incendiar cruzes ou matar manifestantes com carros. Eles chegaram ao discurso do mainstream conservador com o apoio do bilionário australiano Rupert Murdoch. "A América que conhecemos e amamos não existe mais" por causa de "maciças mudanças demográficas", declarou pesarosa no ar a âncora do horário nobre da Fox News Laura Ingraham. Análise de audiência mostra que 94% do público da Fox é branco, a média de idade é 65 anos. Ou seja, são 10% da população. Blackkklansman não tem o poder de furar esta bolha. Mas um grande filme, que fala a este momento nefasto nas relações raciais no país, é a coisa certa.

Estadão
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