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Crítica: Com 'Memoria', Apichatpong cria um filme de sugestão

Misterioso longa colombiano do diretor tailandês logo se transforma num filme de busca

22 jul 2022 - 17h32
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Em visita à irmã, na Colômbia, Jessica Holland, personagem de Tilda Swinton, passa a ouvir um misterioso som. Algo como um estrondo. A partir de então, não consegue mais dormir. Ela ouve, nós ouvimos. Procura um técnico de som para que ele tente, através de descrições aproximadas (e muito subjetivas), reproduzir esse ruído que apenas ela (e nós) conseguimos ouvir.

Esse é o início de Memoria, o misterioso filme colombiano do tailandês Apichatpong Weerasethakul. Logo se transforma num filme de busca. Jessica faz amizade com uma arqueóloga (Jeanne Balibar), que pesquisa esqueletos encontrados numa região do país. Jessica dirige-se para lá, onde conhece outro personagem misterioso, um homem que escama peixes à beira de um rio. O desfecho é algo que mescla a linguagem do fantástico à da sci-fi. Mas não seria abusivo dizer que toda a procura de Apichatpong se apoia numa vertente que poderíamos chamar de "metafísica", sem abusar muito do termo.

Numa arte enquadrada preferencialmente em matriz realista, Apichatpong não se incomoda de olhar outras dimensões, digamos assim, menos atadas ao real. Há outros. Tarkovski fala em esculpir o tempo. Patrício Guzmán, em filmar o que não se vê. Apichatpong busca esse "além de...". Outras dimensões. Essas que não se enxergam e não se dão de imediato. Pensa o cinema como mecanismo de prospecção da magia do mundo.

É algo que assusta, ao mesmo tempo que fascina. Já fez coisa semelhante em Mal dos Trópicos e Tio Boonmee. Aliás, todo seu cinema é habitado por obsessões como a floresta, os espíritos, as doenças, os sonhos, o sono, os resíduos. São constantes, a compor um cinema que não se presta de forma direta ao entendimento. Como Apichatpong costuma dizer em entrevistas, não se deve ceder à tentativa da compreensão imediata. Essa atitude apenas trava a fruição da obra, esse mergulho em águas pouco transparentes.

No entanto, o filme é límpido, claro como água de regato. Um primor de simplicidade em sua mise-en-scène. Mas sempre nos interroga, e justamente com a pergunta que devemos evitar a todo custo durante o percurso: o que tudo isso está querendo dizer? O convite ao espectador é deixar-se levar. Como dizia Lacan, há um tempo para ver e um tempo para compreender - que não necessariamente são simultâneos. À maneira oriental, Apichatpong sugere um passo atrás, um compasso de espera em relação a seus filmes, que nos acompanham durante muito tempo, justamente porque vão se destilando aos poucos em nosso espírito.

De resto, trata-se de filme de sugestão, aberto a múltiplas interpretações, à maneira das obras abertas de que falava Umberto Eco. Não existe maneira linear de dizer: o filme significa isto ou aquilo. Mesmo porque ele é não binário, para usarmos um termo da moda.

No entanto, parece óbvio que, entre outras vertentes, e até pelo título que tem, debruça-se sobre a vasta questão da memória. Tilda, tentando informar como percebe o estrondo para que o técnico consiga reproduzi-lo, percebe que o som se desdobra em diversas camadas de memória. Há também a amizade com a arqueóloga Jeanne Balibar, que exuma o passado pelo estudo dos ossos. Dos restos dos seres humanos, sobre os quais se depositam sucessivas camadas da história de uma cultura, de modo geral feitas de violência.

Esse desdobramento de memórias leva a personagem de Tilda como a sair de si mesma, abrir-se, projetar-se em outros tempos e espaços nesse desfecho siderante, que permanece em nossas retinas, por fatigadas que estejam.

MEMORIA

COTAÇÃO: ÓTIMO

Estadão
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