Após a reportagem do Estadão Verifica sobre médicos antivacina que divulgam informações falsas sobre uma suposta síndrome não comprovada para lucrar com protocolos de tratamento, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) manifestou "repúdio à disseminação de informações infundadas por profissionais de saúde que, contrariando o conhecimento científico estabelecido, associam vacinas mRNA a uma suposta 'síndrome pós-spike' ou 'spikeopatia' sem qualquer comprovação científica".
Após a reportagem, o ministro Alexandre Padilha foi às redes sociais anunciar que, em conjunto com a Advocacia-Geral da União (AGU), adotará "medidas cabíveis". Entre as ações, está a representação criminal na Justiça contra os profissionais que divulgam a suposta síndrome.
Grande matéria investigativa! Diferente de outros governos, não seremos lenientes com o negacionismo! O @minsaude junto c/ o Ministro @jorgemessiasagu acionaremos todas as medidas cabíveis pra impedir que essas pessoas continuem colocando em risco a vida da nossa população e… pic.twitter.com/bSWIoXPDon
— Alexandre Padilha (@padilhando) November 16, 2025
'É inadmissível'
A associação, que reúne médicos imunologistas e alergistas, ressalta que a matéria do Estadão Verifica expõe práticas médicas que exploram o medo da população, promovendo tratamentos sem respaldo da literatura científica, colocando em risco a saúde pública e a confiança nas vacinas — ferramentas fundamentais no combate à covid-19 e a outras doenças imunopreveníveis.
As vacinas aprovadas por agências reguladoras nacionais e internacionais são seguras e eficazes, passando por processo rigoroso de comprovação científica, reforçam os profissionais. Eles explicam ainda que a imunologia clínica, como ciência, não pode ser usada para validar práticas sem evidência.
A publicação usada pelos médicos para embasar a recomendação de tratamentos para a "spikeopatia" e desaconselhar a vacinação é um estudo observacional descritivo, ou seja, levanta uma hipótese a partir da experiência clínica, mas não serve para comprová-la cientificamente.
No artigo, que foi despublicado, são descritos os sintomas de cinco pacientes que teriam sido supostamente afetados pela "síndrome pós-spike", incluindo pacientes que não receberam qualquer dose da vacina.
Sobre as limitações do estudo, a Anvisa destacou o número "muito reduzido" de pacientes e ausência de um grupo controle - conjunto de indivíduos que não recebeu o tratamento para ser usado como comparação -, o que "impede conclusões confiáveis", além de não abordar potenciais fatores de confusão. "Não há como afirmar, portanto, que qualquer resultado relatado seja consequência das intervenções do estudo", acrescentou o órgão.
A Asbai cobra os Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para que as atitudes sejam apuradas com rigor. O Código de Ética Médica define que não é permitida a divulgação, fora do meio científico, de processo de tratamento ou descoberta cujo valor científico ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente. É proibido ainda que informações sobre assunto médico sejam divulgadas de forma "sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico".
"É inadmissível que, em pleno século XXI, e diante de tanto esforço da comunidade científica mundial, ainda nos deparemos com condutas que violam princípios éticos, promovem desinformação e colocam em dúvida o papel da ciência", afirma a associação, em nota.
Entenda o caso
Conforme mostrou o Estadão Verifica, médicos que somam mais de 1,6 milhão de seguidores nas redes sociais afirmam ter descoberto uma intoxicação por vacinas de mRNA com sintomas a longo prazo. Os cursos divulgados pelo grupo custam até R$ 685 e uma consulta particular chega a R$ 3,2 mil.
Eles vendem a ideia de que seria possível tratar a suposta condição, chamada de "spikeopatia", com um protocolo não comprovado cientificamente. A existência da "spikeopatia", porém, não é comprovada pela comunidade científica e nem mesmo por eles.
A proteína spike está presente na superfície do vírus SARS-CoV-2, responsável pela covid-19. As vacinas de mRNA desenvolvidas para combater o vírus promovem a produção da proteína para gerar a resposta imunológica no organismo. É uma maneira de "ensinar" o sistema imunológico a identificar uma parte do vírus e se preparar para combatê-lo.
A teoria dos médicos sugere que a proteína spike induzida pelas vacinas de mRNA teria efeitos nocivos semelhantes ao da covid longa, uma condição crônica reconhecida pela ciência e que pode acometer pessoas infectadas pelo vírus.
A hipótese é defendida pelo imunologista Roberto Zeballos, o infectologista Francisco Cardoso e o neurologista Paulo Porto de Melo em um estudo publicado na revista IDCases, em junho deste ano, e serve de premissa para o tratamento que sugerem no trabalho. O estudo foi contestado e despublicado - o que acontece quando há falhas graves ou evidências de má conduta.
Os três médicos foram procurados pela reportagem, mas somente Cardoso e Zeballos responderam.
Na resposta enviada ao Verifica, Cardoso disse que o estudo publicado na IDCases é um relato de caso, e que esse tipo publicação não tem a função de comprovar causalidade, validar protocolos, nem demonstrar eficácia terapêutica. O infectologista atribuiu a retratação do estudo ao que chamou de "crescente politização da ciência". Segundo ele, "o problema não é o artigo — é o tema que ele aborda".
Zeballos disse que o propósito do estudo não era o de estabelecer um protocolo oficial, mas inspirar colegas a fazer ensaios clínicos para comprovar a eficácia do tratamento.