Meninas que acompanharam show sofreram todo tipo de desrespeito da organização do evento e negligência grave, mas foram vistas por adultos "sabichões" como bobas e até histéricas. E se fosse um jogo de futebol?"Existe a crença de que as mulheres jovens não têm noção do que é importante no mundo. Elas são apenas obcecadas e histéricas". A frase foi dita pela pesquisadora de gênero Victoria Cann, professora da Universidade do East Anglia, na Inglaterra, em uma reportagem sobre a misoginia com que as fãs de K pop são tratadas. Mas se encaixa perfeitamente na tragédia que aconteceu na sexta-feira (17/11) no Brasil, durante um show da cantora Taylor Swift no Estádio Nilton Santos, o Engenhão, no Rio de Janeiro.
Na ocasião, mais de mil pessoas precisaram de atendimento médico e uma dessas mulheres jovens, a estudante de psicologia Ana Clara Benevides, de 23 anos, morreu.
De acordo com laudo preliminar divulgado pela emissora CNN, a causa da morte de Ana seria uma hemorragia pulmonar. Em entrevista, a delegada Juliana Almeida afirmou que esse tipo de hemorragia pode ser causada por "calor, insolação e desidratação". Mas o IML aguarda o resultado de exames toxicológicos e histopatológicos para ter uma resposta definitiva sobre a morte da jovem.
O que podemos afirmar é que a onda de calor extremo que atingiu a cidade, causada pelas mudanças climáticas, foi agravada por atitudes humanas.
Os organizadores do show, da empresa T4F (Time for Fun), proibiram que os fãs entrassem com garrafas de água (as disponíveis eram vendidas por oito reais), cobriram parte do gramado do estádio com placas de metal e ainda teriam colocado tapumes em saídas de circulação de ar. Na plateia, fãs gritavam em inglês, para Taylor: "Water, water (água, água), em uma cena que parecia um filme distópico sobre o aquecimento global e os horrores do capitalismo. Segundo os bombeiros, a sensação térmica no interior do estádio beirou os 60°C.
Culpabilização
Nessa história, muitos podem ser considerados culpados: a mudança climática, a produção do evento, as autoridades, que não fiscalizam o estádio, apesar de saber da previsão de calor extremo e por aí vai.
Mas, durante os shows, e ainda agora, nos comentários sobre a tragédia, muitos ridicularizam os fãs de Taylor, um grupo formado principalmente por adolescentes e mulheres jovens. Elas seriam muito "fanáticas", teriam chegado ao show "cedo demais". Muitos riram das meninas e de suas mães.
As fãs, que sofreram todo tipo de desrespeito da organização do evento e negligência grave (uma menina morreu, outras poderiam ter morrido), foram vistas pelos adultos "sabichões" como bobas e até histéricas.
O mesmo tratamento aconteceria se esse caos acontecesse em um show de metal? Quando acontece uma tragédia em um jogo de futebol os homens são vistos como "histéricos fanáticos"? Não, certo? E é difícil imaginar algo mais fanático do que brigar em jogos de futebol.
No caso do concerto da Taylor, foram relatadas denúncias de que algumas fãs que procuraram o atendimento médico do estádio na sexta-feira e no sábado passando mal por causa do calor teriam recebido clonazepam, um ansiolítico usado para tratar síndrome de pânico e ataques de ansiedade.
Se isso de fato aconteceu, é muito grave, já que esse é um remédio tarja preta, não indicado para insolação ou desidratação. E também significaria que elas teriam sido tratadas como histéricas, que estavam "nervosas demais" por causa de sua ídola. Não, elas relatam que passaram mal por causa do calor.
Achar que meninas e mulheres jovens são bobas e histéricas é um pensamento misógino antigo e arraigado na sociedade. E, quem esteve no show e teve um olhar cuidadoso sobre como as meninas eram tratadas, observou o quanto a misoginia esteve presente.
Caso da roteirista Renata Corrêa, que foi ao show com sua filha pré-adolescente no sábado, dia que o show foi cancelado (e transferido para segunda-feira, 20/11) "O que vivemos ontem no Engenhão foi uma face da misoginia, do ódio e desprezo contra meninas e mulheres", relatou nas redes sociais. Renata, que teve que, entre outras coisas, que escapar de um arrastão e brigar com um segurança para poder voltar ao estádio e se abrigar, disse que viu funcionários debochando de adolescentes que choravam. "O capitalismo e a misoginia são faces da mesma moeda. Mulheres e meninas podem servir e dar lucro, mas não podem ser respeitadas", escreveu.
Infelizmente, Renata tem razão. E, até o fechamento deste texto, nem os pais de Ana Clara Benevides, morta no show, estavam sendo tratados com respeito pela empresa que produziu o show.
Aos prantos, a mãe da estudante, Adriana Benevides, disse ao programa "Fantástico" no domingo (19) que a família não tinha recebido nenhuma ajuda da T4F para fazer o translado do corpo para o Mato Grosso do Sul, onde moram. "O pessoal do show, que matou, não está dando suporte para a gente trazer ela para casa", disse, entre soluços, a mãe da menina.
Vaquinha de fãs solidárias
Quem resolveu a situação? Por enquanto, não foi a produtora, nem a equipe de Taylor, nem as autoridades, mas as fãs. Sim, as "meninas bobinhas" (que de bobas não têm nada) organizaram uma vaquinha para custear o translado do corpo. Na segunda-feira, a mãe de Ana Clara agradeceu a elas: "Graças a deus, agora de manhã já conseguimos um valor que dá para fazer tudo o que a gente queria. Graças a deus, foi muita gente que doou." Emocionada, ela agradeceu aos fãs que fizeram as doações. "Estamos muito felizes com tudo o que vocês fizeram por nós", disse.
Alguém acha mesmo que meninas capazes de tamanha mobilização são bobas? Elas se mostraram mais conscientes e organizadas que a própria empresa de eventos e a equipe milionária da cantora pop. Elas merecem respeito.
Taylor Swift ainda faz três shows em São Paulo no fim de semana. Tomara que, dessa vez, as meninas sejam tratadas como merecem.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.