A retração crescente dos Estados Unidos de organismos multilaterais e foros globais — incluindo a saída ou suspensão de participação da OMS (Organização Mundial da Saúde), da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e do Acordo de Paris, bem como a ausência em encontros recentes como a COP 30 e a Cúpula do G20 na África do Sul — tem produzido efeitos que vão além da diminuição de presença diplomática.
Esse movimento abre a possibilidade de uma transformação mais profunda no modo como regras, expectativas e padrões de comportamento são definidos no sistema internacional. Instituições multilaterais funcionam como arenas nas quais os Estados negociam significados, constroem consensos e atualizam normas coletivas. Quando uma potência se distancia desses espaços, ela reduz não apenas sua visibilidade, mas também sua capacidade de participar da produção daquilo que se torna legítimo, aceitável e desejável no cenário global.
Análises recentes do Carnegie Endowment for International Peace mostram que a revisão em curso da participação norte-americana em organismos internacionais envolve centenas de tratados, compromissos legais e acordos de cooperação, sinalizando uma mudança estrutural na postura dos EUA em relação ao multilateralismo. O Carnegie destaca que esse processo inclui tanto retiradas formais quanto reduções drásticas de financiamento em áreas como desenvolvimento, saúde global e programas humanitários.
A suspensão de contribuições a agências da ONU e a manutenção do bloqueio às indicações para o Órgão de Apelação da OMC (Organização Mundial do Comércio) ilustram como decisões norte-americanas têm limitado o funcionamento de pilares históricos da governança global. Em termos práticos, a paralisia do sistema de solução de controvérsias da OMC significa que normas comerciais antes consideradas universais tornam-se passíveis de interpretação política, abrindo espaço para blocos regionais, regras paralelas e regimes não coordenados.
Novos protagonismos
Esse cenário abre oportunidades para que outros atores ampliem sua influência normativa. A China, em particular, tem expandido sua presença em organizações multilaterais centrais: lidera atualmente a direção da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), aumentou contribuições e presença técnica na OMS, assumiu posições de influência na ITU (União Internacional de Telecomunicações), sobretudo nos grupos que definem padrões para telecomunicações e 5G, e intensificou sua atuação em projetos industriais da UNIDO(Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial).
No UNDP (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e no IFAD (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), a presença da China tem se materializado tanto no financiamento quanto na implementação de programas alinhados a prioridades de combate à pobreza, segurança alimentar e agricultura sustentável. Na WIPO (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), o crescimento exponencial de patentes chinesas ampliou o peso do país nos debates sobre inovação e propriedade intelectual. Na própria OMC, a China passou de ator defensivo a protagonista de iniciativas regulatórias em temas como subsídios industriais e economia digital.
Além disso, a crescente presença de representantes chineses em posições-chave no sistema ONU — chefias de departamentos, coordenação de comitês especializados e liderança em agências técnicas — fortalece sua capacidade de moldar agendas e influenciar processos de tomada de decisão.
Paralelamente, Pequim tem fortalecido instituições alternativas que não apenas complementam, mas em certos casos tensionam o modelo tradicional de governança. O AIIB (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura) tornou-se um dos principais financiadores de projetos de infraestrutura em regiões estratégicas, enquanto o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento), sediado em Xangai, apoia projetos de energia, cidades sustentáveis e resiliência em economias emergentes. A BRI (Iniciativa Cinturão e Rota) opera como plataforma global de investimentos, construção de corredores econômicos e padronização de infraestrutura, funcionando como eixo articulador da influência chinesa.
Futuro em aberto
Essa combinação de presença ampliada em organizações tradicionais e criação de instituições alternativas permite à China atuar simultaneamente em múltiplos níveis — normativo, técnico, financeiro e diplomático. Contudo, isso não significa que o multilateralismo caminhe automaticamente rumo a uma hegemonia chinesa. O futuro do sistema permanece em aberto por razões estruturais, políticas e históricas.
Primeiro, porque o sistema multilateral é intrinsecamente plural. União Europeia, Índia, Japão, Brasil, Indonésia, África do Sul e diversas coalizões regionais competem pela definição de normas e frequentemente resistem à predominância de qualquer potência. O debate recente sobre governança da inteligência artificial — no qual UE, China e EUA apoiam modelos regulatórios distintos — é um exemplo claro de que o espaço normativo global permanece profundamente contestado.
Segundo, precedentes históricos revelam que períodos de retração de uma potência não resultam necessariamente na ascensão imediata de outra. A década de 1930 ilustra como organizações podem sobreviver, mesmo fragilizadas, sem que um novo ator assuma sua condução. Já nos anos 1970, a diminuição relativa do poder norte-americano não gerou hegemonia soviética, mas sim arranjos fragmentados de governança, como o G7, que diluíram o centro decisório do sistema.
Por fim, a própria China enfrenta limitações importantes. Muitos países permanecem abertos aos financiamentos e aos investimentos chineses, mas rejeitam a adoção automática de seus padrões regulatórios. A experiência da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) expôs fragilidades na gestão de riscos de crédito e na coordenação entre bancos, empresas e governos envolvidos em grandes projetos de infraestrutura, especialmente em economias com elevada vulnerabilidade fiscal, como demonstrado pelo caso do Sri Lanka. Em paralelo, resistências regulatórias em mercados avançados — como a posição europeia diante do 5G da Huawei — reforçam que a projeção internacional chinesa encontra limites quando confrontada por preocupações de governança, risco e soberania.
Por essas razões, o sistema multilateral transita hoje por uma zona de incerteza: o crescente distanciamento dos Estados Unidos do próprio sistema multilateral que ajudaram a construir no pós-Segunda Guerra Mundial — incluindo a arquitetura de Bretton Woods — tampouco implica um domínio chinês inevitável, mas revela um processo contínuo de negociação, contestação e redefinição das normas globais. A direção final dependerá de como as grandes potências — e os atores médios — ocuparão, disputarão e transformarão os espaços institucionais nos próximos anos.
Alexandre Ramos Coelho também é professor e coordenador do MBA em Geopolítica da Transição Energética da FESPSP. Pesquisador Sênior do Centro de Estudos de Geoeconomia do Comércio e Investimentos da EESP-FGV-SP. Fellow da Geoeconomics Society - Helsinki. Co-Chair da Comissão de Estudos Asiáticos e do Pacífico da International Political Science Association (RC18-IPSA).