Como as redes sociais bloquearam Trump e por que isso gerou um grande debate sobre liberdade de expressão

As redes sociais têm sido acusadas ao mesmo tempo de limitar a liberdade de expressão e de não fazer o suficiente para evitar a violência e o discurso de ódio

14 jan 2021 - 15h52
(atualizado às 15h55)
Trump foi bloqueado no Twitter
Trump foi bloqueado no Twitter
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O bloqueio da conta do presidente americano, Donald Trump, no Twitter depois que seus apoiadores invadiram o Congresso dos EUA em 6 de janeiro foi comemorado por alguns e criticado por outros.

Entre os críticos da decisão estão principalmente os apoiadores do presidente dos EUA — mas os partidários de Trump não são os únicos a reclamar.

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A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, se referiu à medida como "problemática" por limitar "o direito fundamental à liberdade de expressão" — segundo ela, nenhuma companhia privada deveria ter um poder tão grande e é a legislação do país que deveria regular o funcionamento das redes sociais.

O ativista russo Alexei Navalny afirmou que o bloqueio foi "um ato de censura inaceitável". A medida tem gerado preocupação entre alguns defensores da liberdade de expressão principalmente em países onde ela não é garantida.

"Obviamente o Twitter é uma empresa privada, mas vimos muitos exemplos na Rússia e na China de empresas privadas que se tornaram as melhores amigas do Estado e facilitadoras da censura", explicou Navalny em sua postagem.

Para outros, porém, o mais preocupante é justamente que uma empresa privada conseguiu silenciar em parte o presidente dos EUA — muitas vezes considerado o homem mais poderoso do mundo — privando-o de seu megafone favorito. Trump utilizava muito o Twitter.

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"O fato de um CEO poder desconectar o alto-falante do presidente dos Estados Unidos sem qualquer controle e equilíbrio é preocupante", Thierry Breton, funcionário da União Europeia, em um artigo de opinião publicado no site Politico.

E até o ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, interveio no debate, alertando sobre os riscos das plataformas tecnológicas decidirem "quem deve e quem não deve ter voz".

As referências a uma suposta censura e à liberdade de expressão também têm sido frequentes nas críticas dos partidários de Trump, que também foram objeto de medidas semelhantes em várias redes sociais.

O Twitter anunciou nesta segunda-feira o fechamento de "mais de 70 mil contas" vinculadas ao QAnon, grupo de teoristas da conspiração que já antes da eleição também havia sido objeto de bloqueio no aplicativo e também no Facebook.

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A rede social de Mark Zuckerberg também suspendeu temporariamente a conta de Trump, assim como o Instagram. O Snapchat, Twitch e o YouTube fizeram o mesmo.

O Facebook também disse que está removendo todo o conteúdo que menciona a frase "stop the steal" (parem o roubo, em inglês), o slogan associado às alegações - sem provas - de Trump de que a eleição presidencial de novembro passado foi fraudada.

A Amazon parou de fornecer serviços de hospedagem para carregar o aplicativo da rede social Parler, plataforma parecida com o Twitter que se tornou popular entre militantes de extrema direita e seguidores do presidente.

O futuro da Parler também está ameaçado pela decisão do Google e da Apple de parar de oferecer o aplicativo em suas lojas virtuais, bem como pela recusa de muitos outros provedores online em fornecer-lhes espaço de hospedagem.

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"A liberdade de expressão morreu e está sob o controle dos grandes senhores da esquerda", disse Donald Trump Jr, filho de Trump, acusando os donos bilionários das redes de serem "de esquerda".

Mas, como lembra David Díaz-Jogeix, diretor de programas para a liberdade de expressão da ONG Artigo 19, mesmo nas sociedades democráticas mais avançadas a liberdade de expressão está sujeita a certos limites que Trump (e vários de seus seguidores) parecem ter ultrapassado.

Parler se tornou uma rede alternativa ao Twitter para militantes de direita
Foto: EPA / BBC News Brasil

Risco de violência

"Inicialmente, as mensagens foram eliminadas devido ao risco iminente e real de violência. Esse é o fator determinante", disse Díaz-Jogeix, que acrescentou ser preciso levar em conta o imenso número de apoiadores de Trump e sua posição de influência.

"Nesse contexto, a eliminação desses tuítes faz sentido. E a suspensão da conta é grave, mas legítima, embora possa ser desproporcional. E digo 'possa ser' porque não sabemos se é uma suspensão permanente", disse ele à BBC Mundo.

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A potencial ameaça de violência também foi a justificativa usada pela Amazon Web Services (AWS) para explicar sua decisão de interromper o fornecimento de seus serviços à Parler.

"Está claro que há uma quantidade significativa de conteúdo na Parler que incentiva e incita a violência contra outras pessoas, e que a Parler não pode ou não deseja identificar e remover rapidamente esse conteúdo, o que é uma violação de nossos termos de serviço." Amazon argumentou.

Parler, que anunciou um processo contra a Amazon, sustenta, por sua vez, que os verdadeiros motivos seriam "animosidade política" e "reduzir a concorrência no mercado de serviços de microblog em benefício do Twitter".

Mas, como explica a pesquisadora de ética e tecnologia Stephanie Hare, esta não é a primeira vez que uma grande empresa de tecnologia norte-americana toma medidas semelhantes.

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"A Cloudflare parou de fornecer entrega de conteúdo, proteção e serviços de suporte para o site da supremacia branca The Daily Stormer em 2017 e ao fórum 8Chan, cheio de conteúdo extremista, em 2019, depois que o 8Chan foi usado pelo autor de um massacre em El Paso, Texas", diz Hare.

Díaz-Jogeix lembrou que o Twitter se reserva o direito de restringir o acesso à sua plataforma de acordo com os regulamentos da comunidade e os termos de serviço, que, no entanto, podem ser legalmente questionados.

"Na Europa, houve vários casos em que algumas redes removeram pessoas de suas plataformas e as pessoas os levaram a tribunais em seus países. Os juízes então forçaram as plataformas a devolverem seu espaço", disse o especialista do Artigo 19.

"Mas há uma falta de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e também nos Estados Unidos, sobre se há uma obrigação de dar espaço nessas plataformas para indivíduos", diz.

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Trump foi bloqueado no Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Snapchat
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Espaço público?

Para Santiago Pardo Rodríguez, professor da Universidade dos Andes, no caso do encerramento da conta de Trump há outros elementos a serem considerados que tornam o caso mais complexo.

Como o constitucionalista colombiano explicou em uma postagem no Twitter, em 2017 a Universidade de Columbia processou Trump por bloquear sete pessoas de sua conta no Twitter.

Um ano depois, um juiz concordou com o pedido da universidade e em 2019 outro Tribunal confirmou que Trump não poderia bloquear ninguém de sua conta no Twitter porque constituía um "espaço público": um espaço onde a liberdade de expressão goza de ampla proteção contra as ações do governo que a violem.

"E a questão agora é: essas proteções constitucionais são estendidas às empresas privadas? Ou seja, uma empresa privada retirar alguém desse espaço é uma violação à liberdade de expressão da mesma forma que uma ação do governo seria? Acho que é um debate muito interessante e algo que precisa ser discutido", diz Pardo à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

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O jurista gostaria que essa discussão ocorresse na Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas, por enquanto, ele afirma que não considera necessariamente a atitude do Twitter inadequada.

"É aí que entra também o caso Brandenbrurg, um julgamento que levou à criação de uma nova regra. Essa norma diz que o governo pode limitar o conteúdo em condições muito específicas: quando houver uma iminência de que esse discurso violento possa produzir uma ação ilegal", afirma.

Isso, no entanto, também levanta a questão de por que o Twitter não agiu antes.

E também a questão de se esse tipo de decisão pode ser deixada exclusivamente nas mãos das redes sociais, que têm sido acusadas ao mesmo tempo de limitar a liberdade de expressão e de não fazer o suficiente.

Dar limites a liberdade de expressão não é censura, dizem os especialistas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mais rigorosas

Até agora uma das principais regras de plataformas como Facebook e Twitter era não interferir no conteúdo publicado por políticos, pois eles os consideravam muito importantes para o debate público.

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Isso significava que usuários como o presidente dos EUA desfrutavam de mais liberdade do que outros usuários.

Mas desde o início da pandemia do coronavírus, as coisas começaram a mudar significativamente e as empresas começaram a tomar mais medidas contra líderes mundiais que espalharam desinformação.

Em março, o Facebook e o Twitter removeram postagens do presidente brasileiro Jair Bolsonaro e do presidente venezuelano Nicolás Maduro por espalhar inverdades sobre a covid-19.

Mas foi só em maio, no contexto dos protestos do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam, em inglês), que o Twitter tomou uma atitude contra uma mensagem postada por Trump.

O Twitter colocou um alerta sobre uma mensagem dizendo que ela glorificava a violência: "Quando começa o saque, começa o tiroteio", escreveu Trump.

E ações desse tipo, que se multiplicaram durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos, aumentaram ainda mais desde os eventos de 6 de janeiro, em todo o mundo.

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Por exemplo, o Facebook anunciou na segunda-feira a remoção de contas vinculadas ao governo de Uganda que supostamente estavam sendo usadas para fraudar as próximas eleições.

E para o advogado especialista em privacidade Whitney Merrill, isso aponta para uma mudança na postura dos gigantes da tecnologia.

"As regras e diretrizes das redes sociais estão evoluindo com o tempo, o que é normal, mas não têm sido aplicadas de forma consistente em todo o mundo", diz ele à BBC News Mundo.

Merill antecipa que a punição de Trump pode ser o início de um expurgo de comportamentos semelhantes em todo o mundo.

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, já disse que gostaria de mudar a chamada Seção 230 - uma lei que em grande parte exonera as redes sociais de responsabilidade pelas publicações de seus usuários. A ideia é aumentar a moderação de conteúdo e reduzir a disseminação de notícias falsas.

Redes sociais começaram a bloquear contas de políticos
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Quem controla os controladores?

Melhorar a legislação também é a proposta da União Europeia.

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A crítica de Angela Merkel à ação do Twitter contra Trump — feita por meio de seu porta-voz, Steffen Seibert 3 destacou que a liberdade de expressão só pode ser restringida "de acordo com a lei e dentro de uma estrutura definida pelos legisladores" e não "por decisão dos administradores das plataformas de mídia social".

E, como lembra Díaz-Jogeix, embora as principais redes sociais venham de um contexto cultural de "absoluta liberdade de expressão", regras internacionais "dão algumas diretrizes para limitar a liberdade de expressão."

Essas regras determinam que discursos que contenham incentivo ao genocídio, incitação à violência ou discriminação contra grupos marginalizados não só podem como devem ser limitados.

"As redes sociais são guiadas por regras internas de funcionamento. O que criticamos é que essas normas não se baseiam, hoje, em padrões internacionais de direitos humanos", diz Díaz-Jogeix.

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Mas, para a ONG Artigo 19, também existe um risco em deixar a regulamentação dessas plataformas nas mãos dos governos.

"Não queremos que o Twitter ou o Facebook decidam quem pode desfrutar da liberdade de expressão. Mas também não achamos que seja uma boa ideia os governos fazerem isso, porque a história mostra que permitir que os governos regulem a liberdade de expressão é uma má ideia ", diz Díaz-Jogeix.

Como alternativa, a ONG está testando na Irlanda uma versão dos conselhos reguladores independentes de imprensa e publicidade que já existem em vários países europeus, adaptados à realidade das redes sociais.

E embora o debate esteja longe de terminar, Díaz-Jogeix acredita que o contexto atual oferece uma oportunidade valiosa.

"O que queremos é reorientar toda essa discussão global que está ocorrendo sobre isso, perguntando o que dizem os acordos internacionais de direitos humanos sobre liberdade de expressão, mas também sobre respeito à privacidade, por exemplo", diz ele.

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