Historiadora descreve os tempos turbulentos da Palestina durante o nascimento de Jesus

Os temas natalinos modernos de paz e alegria eram escassos em meio à "desordem e perigo" da antiga Judéia - assim como são no mundo fragmentado de hoje

24 dez 2025 - 10h12
Época em que Jesus nasceu foi um tempo de medo e revolta contra o domínio de Roma, marcado por violência e massacres Getty Images
Época em que Jesus nasceu foi um tempo de medo e revolta contra o domínio de Roma, marcado por violência e massacres Getty Images
Foto: The Conversation

Todos os anos, milhões de pessoas cantam a bela canção Silent Night ("Noite Feliz" no Brasil), com a seus versos "tudo está calmo, tudo está brilhante".

Todos sabemos que a história do Natal é uma história em que se proclamam a paz e a alegria, e isso permeia nossas festividades, reuniões familiares e troca de presentes. Inúmeros cartões de Natal retratam a Sagrada Família iluminada pelas estrelas, em um estábulo pitoresco, confortavelmente aninhada em uma pequena vila sonolenta.

Publicidade

Mas quando comecei a pesquisar para meu livro sobre a infância de Jesus, Boy Jesus: Growing up Judaean in Turbulent Times ("Menino Jesus: Crescendo na Judéia em tempos turbulentos", em tradução livre), essa canção começou a soar estranhamente errada em termos das circunstâncias reais de sua família na época em que ele nasceu.

As próprias histórias do Evangelho falam de deslocamento e perigo. Por exemplo, uma "manjedoura" era, na verdade, um comedouro fétido para burros. Um bebê recém-nascido deitado nela é um sinal profundo dado aos pastores, que guardavam seus rebanhos à noite contra animais selvagens perigosos (Lucas 2:12).

Quando essas histórias são analisadas em seus elementos centrais e colocadas em um contexto histórico mais amplo, os perigos se tornam ainda mais evidentes.

Veja o Rei Herodes, por exemplo. Ele entra em cena nas histórias da Natividade sem qualquer introdução, e os leitores devem saber que ele era uma pessoa má. Mas Herodes foi nomeado pelos romanos como seu governante de confiança da província da Judéia. Ele permaneceu por muito tempo em seu cargo porque estava — em termos romanos — fazendo um trabalho razoável.

Publicidade

A família de Jesus afirmava ser da linhagem dos reis da Judéia, descendentes de Davi, e esperava trazer um futuro governante. O Evangelho de Mateus começa com toda a genealogia de Jesus, tamanha era a importância disso para sua identidade.

Mas alguns anos antes do nascimento de Jesus, Herodes violou o túmulo de Davi e o saqueou. Como isso afetou a família e as histórias que eles contariam a Jesus? Como eles se sentiam em relação aos romanos?

Um tempo de medo e revolta

Quanto à atitude de Herodes em relação a Belém, lembrada como a casa de Davi, as coisas ficam ainda mais perigosas e complexas.

Quando Herodes foi nomeado pela primeira vez, ele foi expulso por um governante rival apoiado pelos partos (inimigos de Roma), que era amado por muitos habitantes locais. Herodes foi atacado por essas pessoas perto de Belém.

Ele e suas forças revidaram e massacraram os atacantes. Quando Roma derrotou o rival e trouxe Herodes de volta, ele construiu um memorial à sua vitória sangrenta em um local próximo, que chamou de Herodium, com vista para Belém. Como isso fez a população local se sentir?

Publicidade
Belém (em 1898-1914) com Herodium no horizonte: memorial a um massacre. Matson Collection via Wikimedia Commons
Foto: The Conversation

E longe de ser uma vila pacata, Belém era uma cidade tão importante que uma um grande aqueduto levava água até seu centro. Temendo Herodes, a família de Jesus fugiu de sua casa lá, mas eles estavam do lado errado na relação com Roma desde o início.

Eles não estavam sozinhos em seus medos ou em sua atitude em relação aos colonizadores. Os eventos que se desenrolaram, conforme relatado pelo historiador Josefo, do século I, mostram uma nação em revolta aberta contra Roma logo após o nascimento de Jesus.

Quando Herodes morreu, milhares de pessoas tomaram o templo de Jerusalém e exigiram liberdade. O filho de Herodes, Arquelau, massacrou-os. Vários revolucionários judaicos que pretendiam ser reis e governantes tomaram o controle de partes do país, incluindo a Galiléia.

Foi nessa época, no Evangelho de Mateus, que José trouxe sua família de volta do refúgio no Egito — para esta Galiléia independente e uma vila lá, Nazaré.

Publicidade

Mas a independência na Galiléia não durou muito. As forças romanas, sob o comando do general Varo, marcharam da Síria com forças aliadas, destruíram a cidade vizinha de Séforis, incendiaram inúmeras aldeias e crucificaram um grande número de rebeldes da Judéia, acabando por reprimir as revoltas.

Arquelau — uma vez instalado oficialmente como governante — deu continuidade a um reinado de terror.

Uma história da Natividade para os dias de hoje

Como historiador, gostaria de ver um filme que mostrasse Jesus e sua família inseridos nesse mundo social caótico, instável e traumático, em uma nação sob o domínio romano.

Em vez disso, os espectadores têm agora à sua disposição The Carpenter's Son ("O Filho do Carpinteiro"), um filme protagonizado por Nicholas Cage. Ele é parcialmente inspirado em um texto apócrifo (não bíblico) chamado Paidika Iesou - a "Infância de Jesus" -, mais tarde chamado de "O Evangelho da Infância de Tomé".

Você pode pensar que o Paidika seria algo como uma versão antiga do programa de TV de sucesso Smallville, da década de 2000, que acompanhava o menino Clark Kent antes de ele se tornar o Super-Homem.

Publicidade

Mas não, em vez de ser sobre Jesus lutando com seus incríveis poderes e destino, é uma obra literária curta e bastante perturbadora, composta de fragmentos, reunidos mais de 100 anos após a vida de Jesus.

O Paidika apresenta o jovem Jesus como uma espécie de semideus com quem ninguém deve se meter, incluindo seus companheiros de brincadeira e professores. Era muito popular entre o público não judeu, pagão convertido ao cristianismo, que ocupava uma posição desconfortável na sociedade em geral.

Jesus, que realiza milagres, destrói todos os seus inimigos — e até mesmo inocentes. Em um determinado momento, uma criança esbarra em Jesus e machuca o ombro, então Jesus a mata. José diz a Maria: "Não o deixe sair de casa para que aqueles que o irritam não morram".

Essas histórias se baseiam na ideia problemática de que nunca se deve despertar a ira de um deus. E esse jovem Jesus demonstra uma ira instantânea e mortal. Ele também carece de um senso moral.

Publicidade

Mas esse texto também se baseia na ideia de que as ações de Jesus na infância contra seus colegas de brincadeira e professores eram justificadas porque eles eram "os judeus". "Um judeu" aparece como acusador logo nas primeiras linhas. Deveria haver um alerta sobre este conteúdo.

A cena da Natividade em The Carpenter's Son certamente não é pacífica. Há muitos gritos e imagens horríveis de soldados romanos jogando bebês no fogo. Mas, como em tantos filmes, a violência é de alguma forma apenas maligna e arbitrária, não realmente sobre a Judéia e Roma.

É certamente a história contextual e mais ampla da Natividade e da infância de Jesus que é tão relevante hoje, em nossos tempos de fragmentação e "alteridade", onde tantos se sentem sob o jugo dos poderes inflexíveis deste mundo.

De fato, algumas igrejas nos Estados Unidos estão agora refletindo essa relevância contemporânea ao adaptar presépios para retratar as detenções e deportações de imigrantes e refugiados pelo ICE.

Publicidade

De muitas maneiras, o verdadeiro presépio não é simplesmente um símbolo de paz e alegria, mas sim de luta — e, ainda assim, de misteriosa esperança.

The Conversation
Foto: The Conversation

Joan Taylor já recebeu financiamento da Leverhulme Trust, Wellcome Trust, Fulbright Commission, Palestine Exploration Fund e outras sociedades acadêmicas.

Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se