O professor Daniel Mendes, de Santo André, promoveu um projeto educacional para crianças de 5 e 6 anos sobre a obra de Gilberto Gil, resultando em um encontro emocionante com o cantor durante sua turnê de despedida.
A beleza desse encontro parece mesmo música de Gilberto Gil. Em plena turnê de despedida dos palcos, o artista recebeu um grupo de crianças encantadas com uma descoberta recente: sua obra musical. Os pequenos, entre 5 e 6 anos, chamaram a atenção do baiano após contarem sua história em um vídeo produzido pelo professor Daniel Mendes, do EMEI Cândido Portinari, em Santo André, na Grande São Paulo.
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A homenagem viralizou e emocionou o próprio Gil, que retribuiu o carinho convidando a turma para seu show no último sábado, 18. Os fãs adultos poderiam até ficar sem jeito na hora do encontro, mas os pequenos agiram como se fossem amigos próximos do ídolo. Sem cerimônia ou timidez, cerca de 20 alunos correram para abraçar 'Seu Gilberto' no backstage do Allianz Parque, em São Paulo.
"A gente pode cantar uma música para você?", perguntou uma das alunas, que logo emendou com a canção Esperando na Janela, composta por Targino Gondim e imortalizada pelo baiano.
Quem estava lá vendo tudo com os olhos brilhando e um sorriso de "professor coruja" era Daniel Mendes, de 30 anos. Foi nas aulas dele que os pequenos conheceram a obra de Gil e se apaixonaram por composições como A Paz, Andar com Fé e Palco.
Há sete anos trabalhando como professor de educação infantil no ensino público, Daniel conta ao Terra que sempre buscou apresentar grandes artistas brasileiros aos pequenos. "Tem uma uma música da Elis Regina que fala: 'O Brazil não conhece o Brasil'. Temos mesmo esse hábito de não nos conhecermos e valorizarmos apenas o que é de fora. Mas o nosso país é riquíssimo em todos os sentidos! E trazer isso para crianças pequenas é transformador", argumenta.
Música 'para criança' é aquela que transforma
Quando se fala em música para criança, diversos grupos infantis vem à mente. Galinha Pintadinha, Palavra Cantada e Mundo Bita são alguns dos nomes mais conhecidos. Mesmo tendo esses recursos ao alcance, Daniel optou por apresentar artistas menos "convencionais" ao público infantil.
Antes de Gil, as turmas que passaram pela sala de aula comandada pelo professor também aprenderam sobre as composições de Tim Maia e Milton Nascimento. "É claro que a Galinha Pintadinha conversa com a criança e tem um lado bom de resgatar as cantigas populares, a tradição. Mas isso a criança já tem acesso muito fácil, né? Então a escola tem que ampliar esse mundo", explica.
O ensino musical se tornou obrigatório nas escolas por meio da lei 11.769, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases Orçamentárias (LDB) em agosto de 2008. Daniel faz questão de lembrar desse direito: "A escola tem que ampliar o mundo dessas crianças e não só reproduzir aquilo que elas já têm. Na educação infantil, é uma prática comum subestimarmos as crianças e oferecermos coisas que são apenas, mais 'simples'."
É justamente para ampliar o vocabulário e o repertório cultural dos pequenos que o professor aposta em apresentar obras de compositores da Música Popular Brasileira (MPB). "Teve uma mãe que comentou esse ano que a família estava num churrasco com karaokê e todo mundo ficou 'de cara' quando a filha pediu para colocar Gilberto Gil. Ninguém acreditou. Que criança é essa que está pedindo para cantar Gilberto Gil, né?", conta.
"Realmente vai ampliando o mundo delas. Não só na questão do som, da parte de reconhecer mais instrumentos, de valorizar uma música que é um pouco mais pensada, mais trabalhada, mas também as palavras, o vocabulário, o ritmo e por aí vai", explica.
Para montar a playlist de Gil para os pequenos, Daniel preferiu priorizar as músicas com um vocabulário mais simples, como A Paz, Andar com Fé, Aquele Abraço e A Dança, com o MC Hariel. "A discografia dele é riquíssima, tem metáforas e figuras de linguagem. Algumas canções talvez ficassem muito distantes, porque a criança ainda é muito literal", argumenta.
Viral inesperado com homenagem à Gil
No dia 7 de outubro, Daniel publicou um vídeo em sua conta pessoal. Intitulado Alegrias de quintal: uma mini-história de Gilberto Gil, o projeto remontou a trajetória do cantor desde o seu nascimento até os dias atuais. Segundo o professor, os pequenos se divertiram atuando, ajudando no roteiro e fazendo até maquetes para representar melhor o que estava sendo contado.
O vídeo foi resultado de um semestre inteiro com os pequenos explorando e conhecendo a obra do baiano. Daniel conta que o 'estalo' para a produção veio por meio de um livro biográfico raro do cantor. "Trouxe e perguntei se eles queriam contar a história do Gil e para outras crianças na linguagem delas", relembra.
Missão dada foi missão cumprida. Com carisma e certa intimidade com as câmeras, os pequenos finalizaram o desafio ao lado do professor. "Não exigi nada deles, não obriguei. Tudo foi muito orgânico, como a educação infantil tem que ser", diz. Com autorização dos familiares, Daniel publicou nas redes sociais no dia 7 de outubro.
Confira o vídeo completo
O vídeo logo chamou a atenção do portal Doces Bárbaros, uma conta dedicada ao grupo homônimo que Gilbert Gil segue nas redes sociais. O perfil sugeriu uma postagem colaborativa para ampliar a visibilidade do projeto e Daniel, claro, topou.
Foi assim que a equipe de Gilberto Gil ficou sabendo do vídeo. "A produtora dele mandou uma mensagem pelo perfil oficial dizendo que Maria Gil tinha gostado do vídeo e perguntou se eu poderia mandar o arquivo. Eu falei: 'Claro, se vocês quiserem eu chamo com o colaborador também'. Aí quando colocou ele como colaborador, começou a viralizar muito". Atualmente, o vídeo conta com mais de 820 mil visualizações apenas no Instagram.
Para aproveitar o contato, Daniel explicou o projeto de maneira detalhada e deu a ideia do encontro entre os alunos e o ídolo, mas sem muita esperança. "Era um sonho, na minha cabeça, impossível. Qualquer coisa já seria muito. Um desconto para eu arrecadar o resto e eu já teria ganhado o mundo", admite.
'Foi muito humano'
A notícia esperada chegou pouco antes da apresentação, que contou com a participação surpresa de Seu Jorge. "Veio a oportunidade e eles foram super solícitos. Ofereceram um par de ingressos para cada criança, levar um familiar, um par de ingressos para mim, para eu poder levar a alguém da escola e um par de ingressos para a diretora também", detalhou.
"Foi uma coisa muito humana, muito calorosa. Uma honra", emenda. O encontro entre Daniel e sua turma com o ícone da música brasileira foi muito além do esperado. O professor conta que os pequenos estavam animados, enquanto ele, um adulto que também é fã de Gil, estava emocionado com o momento.
"Tudo no mundo das crianças é uma brincadeira. Eu ali esperando para entrar, elas brincando e correndo, eu tentando, ao mesmo tempo, chorar e controlar elas um pouquinho. E aí quando a produção abriu a porta, eles já foram entrando, já abraçaram, pegaram na perna do Gil e se ofereceram para cantar. Fiquei muito comovido pelo acolhimento dele", se emociona.
Depois do abraço, os pequenos também aproveitaram a apresentação. Segundo o professor, a oportunidade foi a primeira de muitos alunos e pais que estavam presentes. "A maioria das crianças e boa parte das famílias não tinham ido a um show. Eles estavam radiantes demais, muito felizes, gritavam...", conta.
Veja o encontro
'Se eu tivesse isso na infância, teria uma vida melhor'
Depois de viver toda essa experiência ao lados dos alunos, Daniel tem certeza que continuará apresentando os clássicos da MPB para as próximas turmas. Segundo o professor, a arte é um dos pilares mais importantes da educação infantil.
"Se eu tivesse tido isso na minha infância, teria tido uma vida até melhor. A arte nos ajuda para viver melhor. Se eu estou passando por um momento em que a Clarice Lispector já escreveu sobre isso, eu vou passar por ele com mais facilidade", exemplifica.
"E a MPB, principalmente a música do Gil, é muito vasta em todos os sentidos. Trata de muitos temas e ritmos. São canções que falam sobre alegria, tristeza, sobre luto. Muitas crianças esse ano acabaram perdendo alguém próximo da família e as músicas estavam nos consolando de certa forma", continua.
A introdução de músicas e artistas populares da cultura brasileira faz parte do projeto educacional que Daniel defende. "Ainda hoje as pessoas veem a criança pequena como um vira-ser. Não importa o que ela pensa, não importa o que ela sente, o que importa é que ela tem que chegar na escola, aprender a ler e escrever. Ok, mas ela vai ler escrever sobre o quê? O que ela conheceu no mundo se ela foi tão podada?."
"É importante saber que o filme [sobre Gilberto Gil] só existiu porque existe hoje o currículo, leis que garantem essa educação infantil protagonista, essa educação infantil que entende a criança como produtora de cultura e enriquece todas as linguagens dela e não apenas a matemática e linguística", destaca.
