Alvo de decisão polêmica, Coaf ajudou a bloquear R$ 176 mi suspeitos em 2018 

No ano passado, órgão que alerta polícia e MP sobre transações financeiras suspeitas, encaminhou 7.345 relatórios; presidente do STF suspendeu todas as investigações em curso no país que tenham sido iniciadas com base em dados compartilhados pelo Coaf.

18 jul 2019 - 06h35
(atualizado às 08h50)
Ao decidir sobre pedido do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, presidente do STF mandou paralisar todas as investigações iniciadas a partir de informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras e da Receita Federal
Ao decidir sobre pedido do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, presidente do STF mandou paralisar todas as investigações iniciadas a partir de informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras e da Receita Federal
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), responsável por identificar transações financeiras atípicas e encaminhar relatórios de inteligência a órgãos de investigação e controle, ajudou a bloquear R$ 176 milhões de origem suspeita no ano passado.

Em 2018, esse valor foi quase quatro vezes maior que no ano anterior, quando os bloqueios judiciais no Brasil e no exterior com base em relatórios do órgão totalizaram R$ 46 milhões.

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Segundo balanço do próprio Coaf, em 2018, o órgão produziu e distribuiu 7.345 Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), listando mais de 378 mil pessoas físicas e jurídicas que fizeram transações atípicas - por exemplo, operações com indícios de lavagem de dinheiro ou de "financiamento do terrorismo". Os relatórios, enviados a órgãos de controle como a polícia e o Ministério Público, podem listar, por exemplo, saques em série, transações em espécie e compras de joias, carros ou imóveis de luxo.

Os números, dizem especialistas, mostram que o órgão é uma peça-chave no combate a crimes como lavagem de dinheiro, terrorismo e corrupção.

O Coaf esclarece que não faz investigações. O órgão afirma que apenas "subsidia eventual instauração de procedimento investigativo" ao coletar indícios de crimes que "devem ser adequadamente investigados pelas autoridades competentes".

Fica a cargo de instâncias do Ministério Público e da polícia, por exemplo, a decisão de pedir à Justiça a quebra de sigilo bancário de uma pessoa jurídica ou física.

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Mas nesta semana, pela primeira vez desde que o Coaf foi criado, em 1998, o "subsídio" de informações fornecidas pelo órgão teve sua dinâmica alterada, pelo menos temporariamente.

O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu todas as investigações em curso no país que tenham sido fundamentadas em dados sigilosos compartilhados pela Receita Federal e pelo Coaf sem autorização prévia da Justiça.

Toffoli acatou pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), um dos cinco filhos do presidente Jair Bolsonaro, que questiona o uso de informações produzidas pelo Coaf em investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Relatório do órgão apontou operações bancárias suspeitas de 74 servidores e ex-servidores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), entre eles de Fabrício Queiroz, motorista e assessor de Flávio Bolsonaro quando o congressista era deputado estadual.

Queiroz (à dir.) é ex-motorista e ex-segurança do hoje senador Flávio Bolsonaro
Foto: Reprodução/Instagram / BBC News Brasil

Toffoli disse ser "temerário do ponto de vista das garantias constitucionais que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado" que o Ministério Público vinha conduzindo investigações "sem supervisão judicial".

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A decisão de suspender as investigações vale ao menos até 21 de novembro. Essa é a data marcada para o plenário do STF discutir a validade de provas obtidas pelo Fisco e pelo Coaf e compartilhadas entre órgãos de controle sem autorização da Justiça.

Para Marco Aurélio Florêncio Filho, professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-doutor em direito penal econômico, o Coaf "tem amparo legal para fazer os relatórios e podemos dizer que é um caso de sucesso". Ele lembra que o Coaf foi criado por pressão internacional por mais transparência no combate à lavagem de dinheiro. "Ele não faz juízo de valor nem diz se há crime. Apenas lista operações suspeitas".

O delegado da Polícia Federal e vice-presidente da Associação Nacional dos Delegados da PF (ADPF), Luciano Leiro, explica que o Coaf é importante porque "otimiza as investigações, principalmente de lavagem de dinheiro" ao indicar quem e quais transações são suspeitas. "Havendo indícios", diz Leiro, delegados e procuradores podem pedir à Justiça a quebra de sigilo para aprofundar as investigações.

Mas o que são transações atípicas listadas pelo Coaf? E quem fornece informações ao órgão que chegou a ser disputado pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública).

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Moro, que, como juiz, despontou ao comandar julgamentos de primeira instância de crimes identificados pela Operação Lava Jato, conseguiu, no início do governo Bolsonaro, que o Coaf - que por 20 anos esteve sob a estrutura do Ministério da Fazenda - fosse transferido para o Ministério da Justiça. Mas o órgão acabou voltando para o Ministério da Economia por decisão do Congresso.

Transações em dinheiro vivo acima de R$ 30 mil devem ser obrigatoriamente comunicadas por bancos, joalherias e comerciantes de pedras precisosas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os relatórios do Coaf são produzidos com base em informações fornecidas por setores obrigados a reportar todas as transações suspeitas e acima do limite estipulado por normas internas.

Além dos bancos, fornecem informações ao Coaf corretoras, empresários de artistas e atletas, joalherias, comerciantes de pedras preciosas, operadoras de cartão de crédito e até bingos.

Transações em espécie acima de R$ 30 mil precisam, necessariamente, ser comunicadas ao Coaf. Esse valor é de R$ 50 mil para empresas de fomento comercial ou mercantil (factoring).

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Além disso, esses setores precisam manter cadastros atualizados de seus clientes e comunicar transações consideradas suspeitas.

"Há sanções administrativas e penais para quem não fornece as informações", diz o professor Florêncio Filho.

Sergio Moro e o atual presidente do Coaf, Roberto Leonel, tentaram manter o órgão sob a estrutura do Ministério da Justiça para facilitar investigações
Foto: Cerimônia de entrega dos Diplomas de Mérito COAF, / BBC News Brasil

Somente em 2018, foram quase 3 milhões de comunicações recebidas pelo Coaf sobre transações suspeitas e em espécie. Atualmente, a base de dados reúne mais de 16,7 milhões de comunicações de operações financeiras.

O professor explica que as informações recebidas não necessariamente resultam em relatórios ou são repassadas a autoridades de outros órgãos. "O Coaf trabalha com inteligência artificial e big data. O cruzamento de informações é automatizado e, a partir das red flags (alertas), é que um analista avalia os dados", detalha o professor.

Esses relatórios são enviados às autoridades competentes que também podem, diz Florêncio Filho, solicitar ao Coaf a verificação de operações atípicas de pessoas e empresas.

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"Há uma via de mão dupla e colaboração entre os órgãos", observa.

Segundo relatório de gestão do próprio Coaf, trocas de informação com autoridades policiais e com o Ministério Público responderam por 85% do total de intercâmbios realizados pelo órgão no ano passado. O judiciário estadual e federal, a Controladoria Geral da União, comissões parlamentares de inquérito e a Receita também são órgãos que trocam informações e podem receber relatórios do Coaf.

"Eles já têm um sistema bem desenvolvido e mandam para os órgãos de interesse como a Polícia Civil, a Polícia Federal, ou o Ministério Público", diz o professor.

O número de relatórios produzidos pelo Coaf subiu significativamente nos últimos anos. Saltou de 1.169 em 2006 para 7.345 em 2018, um aumento de mais de 500%.

O órgão também tem intensificado a fiscalização sobre setores que deveriam fornecer informações.

"Foram realizadas 596 ações de fiscalização para verificação de conformidade das obrigações voltadas à prevenção da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo. (...) Neste ano, foram julgados 132 PAP (Processo Administrativo Punitivo) de empresas e dirigentes, com aplicação de R$ 78,6 milhões em multas e a inabilitação de um dirigente", diz relatório do órgão.

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Falta de estrutura

Florêncio Filho pondera que instituições de transparência, fiscalização, investigação e controle deveriam ter regras mais claras e até protocolos formais para trocar e receber relatórios do órgão. Isso reduziria, diz ele, o risco de mau uso dos dados.

Ele observa ainda, contudo, que a tendência de aumentar a transparência e o controle de transações financeiras com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro e o terrorismo é internacional. "Não é um movimento isolado, é global, encabeçado principalmente por americanos e pela União Europeia para uma troca cada vez maior de informações", diz.

Luciano Leiro, da ADPF, concorda: "O Coaf não é uma invenção do Brasil, todos os países modernos possuem órgãos de inteligência financeira.". "O Coaf é extremamente importante no combate à lavagem de dinheiro e no combate à corrupção. É uma das melhores unidades financeiras do mundo em termos de atuação, possuindo sistemas modernos e legislação bem abrangente", completa.

Apesar de salientar a importância do órgão, com sede em Brasília e que com cerca de 40 profissionais, Leiro diz que falta ao Coaf estrutura e pessoal próprio. "Os poucos que atuam em regra são cedidos (por outros órgãos) ou comissionados (não concursados)".

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