Durante muito tempo, o esporte foi sinônimo de força, resistência e superação física. A dor, dizia-se, era parte do caminho para o pódio. Mas, nos últimos anos, uma revolução silenciosa mudou a forma como os atletas enxergam o que acontece fora das quadras, pistas e piscinas: o cuidado com a saúde mental passou a ser tema central na vida de quem vive da performance.
O movimento ganhou força com vozes que ecoaram além das vitórias. Simone Biles, uma das maiores ginastas da história, chocou o mundo ao abrir mão de competir nas Olimpíadas de Tóquio em 2021 para priorizar o equilíbrio emocional. No surfe, Gabriel Medina revelou que precisou se afastar das competições pelo mesmo motivo. No vôlei, o capitão Bruninho também falou publicamente sobre o peso da autocobrança. Casos como esses abriram caminho para que o assunto deixasse de ser tabu.
- *Esta reportagem faz parte da revista comemorativa de 25 anos do Terra. A publicação traz reflexões sobre o tempo, a mídia e as novas gerações, e pautas conectadas a momentos marcantes, pioneiros e inovadores da plataforma.
Katia Rubio, psicóloga especialista em esporte e professora associada sênior da Faculdade de Educação da USP, explica que esse processo está diretamente ligado à desconstrução da imagem do atleta como super-herói.
"A questão da saúde mental no esporte sempre foi negligenciada e isso está envolvido diretamente com a perspectiva de que o atleta é um super-herói, aquela pessoa que deve enfrentar tudo com coragem, com determinação" - Katia Rubio
"Um fato fundamental para a transformação disso, obviamente, foi a pandemia e a postura da Simone Biles em dizer que não competiria porque não estava bem do ponto de vista psicológico. Quando uma atleta, com a visibilidade que ela tem, anuncia essa indisposição, ela abriu o caminho para que outros atletas que se sentiam como ela também pudessem se manifestar”, afirma.
A paratleta Verônica Hipólito, medalhista paralímpica, também viveu um momento de virada. Mesmo sempre defendendo a importância do tema, foi após uma crise intensa de ansiedade que ela entendeu, na prática, o que significava pedir ajuda. “Depois de uma discussão simples no treino, comecei a pensar em tudo: lesão, carreira, patrocínio, aposentadoria… De repente, eu estava sem ar, com a sensação de que eu iria morrer. Um amigo chamou o psicólogo na hora, e ele me disse: ‘Você teve uma crise de ansiedade alta, precisa começar o tratamento’. Aquilo mudou tudo”.
A mudança não veio apenas dos ídolos, mas também da estrutura que os cerca. Clubes e confederações começaram a incluir psicólogos esportivos em suas comissões técnicas, e a conversa sobre o bem-estar emocional se tornou tão importante quanto a preparação física. Hoje, a frase “a mente comanda o corpo” nunca fez tanto sentido.
O empresário, escritor e palestrante Giuliano Milan, que oferece consultoria para profissionais de alta performance, incluindo atletas olímpicos, reforça que a transformação exige tempo e diálogo.
“Tudo que é novo encontra resistência. São novos hábitos e formas de cuidado que exigem mudanças comportamentais, e mudar comportamento não é tarefa fácil, ainda mais em ambientes competitivos, que historicamente valorizam força, foco e superação. Uma forma de quebrar essas barreiras é falar sobre o assunto abertamente. Quanto mais o tema circula, menos ele é visto como sinal de fraqueza”, diz ele.
Já a visão do técnico José Roberto Guimarães, à frente da Seleção Brasileira de Voleibol Feminino, reforça o quanto o equilíbrio emocional é parte do planejamento esportivo.
"As redes sociais mudaram a relação das jogadoras com os fãs e o público de forma geral. As críticas e os elogios chegam de forma muito mais rápida e as jogadoras estão sempre em exposição." - José Roberto Guimarães
"As atletas têm que administrar tudo isso, além da pressão pessoal, da família, clubes e seleção. Cada atleta é única, com uma personalidade, e a união dessa diversidade é o que faz a diferença no resultado da equipe”, diz ele.
Entre as novas gerações, o discurso de vulnerabilidade passou a ser símbolo de força e não de fraqueza. A surfista Tatiana Weston-Webb, que fez uma pausa na carreira para cuidar da saúde mental, acredita que escutar o próprio corpo foi um passo de coragem.
“O corpo e a mente começaram a dar sinais de que algo não estava em equilíbrio. Sempre fui muito intensa, achava que aguentava tudo, mas comecei a sentir um cansaço diferente, que não passava nem com descanso físico (...). É se permitir ser real, sem precisar estar no controle o tempo todo", diz Tati.
"Como atleta, sempre fui ensinada a ser forte e determinada, e continuo sendo tudo isso, mas aprendi que ser forte também é saber pedir ajuda, reconhecer os próprios limites e falar sobre o que a gente sente." - Tatiana Weston-Webb
Mais do que medalhas, recordes ou troféus, o legado dessa mudança é humano. Ao reconhecer que o equilíbrio emocional é parte da performance, o esporte se torna um espaço mais empático, saudável e real. Afinal, cuidar da mente é também uma forma de continuar competindo dentro e fora das arenas.