A Bhagavad Gita, texto clássico de aproximadamente cinco mil anos, descreve a austeridade da fala como o ato de dizer o que é verdadeiro, agradável e benéfico, sem perturbar, acompanhado do estudo contínuo. Este artigo mostra como integrar essa sabedoria à sua oratória — do desenho da mensagem à entonação, dos gestos ao pedido claro — com exercícios práticos para aplicar imediatamente no palco, na sala de reunião e na vida.
Gita 17:15
anudvega-karaṁ vākyaṁ / satyaṁ priya-hitaṁ ca yat / svādhyāyābhyasanaṁ caiva / vāṅ-mayaṁ tapa ucyate
“A austeridade da fala consiste em proferir palavras verazes, agradáveis, benéficas e que não perturbam os outros, e também em recitar regularmente a literatura védica.”
Em linguagem contemporânea: fale a verdade (satya), de modo gostoso de ouvir (priya), para o bem do outro (hita), sem inflamar (anudvega-kara) — e estude-se continuamente (svādhyāya). Na The Speaker, chamamos isso de oratória de alta performance com impacto humano: verdade + benevolência + técnica.
O fundamento que antecede a CNV
Antes de a Comunicação Não Violenta (CNV) virar método, a Gita já oferecia um critério ético-técnico para a fala. Aqui estão as cinco qualidades que estruturam o ideal:
Satya (verdade): compromisso com fatos e honestidade intelectual.
Prática: diferencie “observação” de “interpretação”. “O relatório chegou às 19h” (fato) ≠ “você não se importa com prazos” (julgamento).
Priya (agradável): forma que torna a verdade digerível.
Prática: organize a fala em blocos curtos, variação de ritmo e metáforas simples. “Pense no projeto como uma ponte: precisamos das bases antes do asfalto.”
Hita (benéfica): propósito que melhora a vida do outro e do coletivo.
Prática: ao preparar a fala, responda “o que essa pessoa ganha ao me ouvir?” e inclua um benefício explícito.
Anudvega-kara (que não perturba): firmeza sem inflamar.
Prática: retire ironias, sarcasmo e hipérboles. Use tom assertivo com vocabulário neutro.
Svādhyāya (autoestudo): lapidar continuamente a própria fala.
Prática: grave-se 5 minutos por dia; revise gesto, pausas, clareza do pedido.
Resumo prático: a austeridade da fala não é “falar pouco”, é falar bem — o mínimo necessário para gerar o máximo de clareza e construção.
Intenção, forma e conteúdo: o tripé da comunicação que constrói
Todo ato de fala tem três camadas:
Intenção (por que falo?): serviço, promoção, correção, inspiração?
Forma (como entrego?): entonação, pausas, timbre, ritmo, gestos, palavras, escuta ativa.
Conteúdo (o que digo?): fatos, dados, histórias, argumentos, pedido.
Quando uma camada desalinha, nasce ruído:
Intenção benevolente + forma ríspida ⇒ soa agressão.
Conteúdo impecável + forma insegura ⇒ soa duvidoso.
Forma empática + conteúdo falso ⇒ soa manipulação.
Excelência é alinhamento visível entre as três. Por isso, comece pela intenção, desenhe o conteúdo para servir a essa intenção e treine a forma para sustentar ambas.
Exercício The Speaker – Alinhamento em 90 segundos
Nomeie a intenção em 1 frase: “Quero reconhecer o esforço e corrigir a rota.”
Defina o tom: “apoio firme”, “comemoração”, “urgência calma”.
Estruture o conteúdo: 3 fatos + 1 consequência + 1 pedido claro.
Programe a forma: 1 gesto de ênfase (semicírculo da mão), 1 pausa (antes do pedido), 1 variação de timbre (grave no dado crítico).
Ensaiar em voz alta por 60s e ajuste o que soar áspero ou confuso.
Modelo de 20 segundos
“Parabéns pelo avanço nas etapas A, B e C (fatos). Se mantivermos esse ritmo, cumprimos o prazo com folga (consequência). Meu pedido: priorize hoje a correção do item X e me envie até 18h. Conto com você.”
“A verdade é joia, não pedra”: o mito da franqueza que fere
Há quem use “sinceridade” como licença para ferir. A Gita e a CNV concordam: franqueza sem benevolência é descuido. Lembre-se dos três filtros:
É verdade? (fato observável, dado, evidência)
É útil? (gera clareza, reduz risco, orienta ação)
É gentil? (reconhece a dignidade do outro)
Se dois filtros falham, silencie ou refaça a mensagem. Se os três passam, avance — com técnica.
Reformulações úteis:
“Você é desorganizado.” → “Nos últimos 15 dias, recebemos três arquivos fora do padrão combinado.”
“Você sempre atrasa.” → “Nas últimas quatro entregas, duas chegaram após o prazo.”
“Isso é impossível.” → “Com os recursos atuais, não entregamos em 48h; proponho 96h com esses marcos.”
Desenho da mensagem: estruturas que facilitam a clareza
Estrutura 3-1-1 (para falas curtas)
3 fatos, 1 consequência, 1 pedido.
Ex.: “A, B e C aconteceram. Se repetirmos, perdemos o cliente. Pedido: revisar processo X hoje.”
Estrutura SCQA (Situação–Complicação–Questão–Resposta)
Situação: onde estamos.
Complicação: o que ameaça o plano.
Questão: a pergunta certa.
Resposta: sua recomendação.
Problema–Causa–Efeito–Solução–Próximo passo
Excelente para reuniões técnicas e apresentações de status.
Storytelling em 90s (gancho–conflito–virada–lição–pedido)
Útil para palco: abre atenção, gera identificação e aciona ação.
Dica: escolha uma estrutura por fala. Misturar frameworks confunde.
Entonação: ritmo, volume, pausas e timbre a seu favor
A forma vocal dá vida ao conteúdo:
Ritmo: varie. Rápido para itens simples, lento para decisões e pedidos.
Volume: aumente ligeiramente em ideias-chave. Volume muito alto contínuo soa agressivo.
Pausas: antes do pedido e após uma ideia forte. Pausa é sublinhado sonoro.
Timbre: estabilize no médio-grave para transmitir autoridade serena.
Dicção: articule finais de palavra; evite “comer” sílabas.
Treino de 3 minutos
1 min de leitura com pausa consciente a cada vírgula; 1 min marcando palavras-chave com leve ênfase; 1 min simulando o pedido com pausa antes e depois.
Gestos, postura e linguagem não-verbal
Sua fala também é corpo:
Postura neutra: pés na largura do quadril, joelhos descruzados, ombros soltos.
Gestos congruentes: amplos, à altura do peito, acompanhando o tamanho da ideia.
Mãos visíveis: sinal de abertura e previsibilidade.
Olhar: distribua em triângulos de público (palco) ou em ciclos de 3–4 pessoas (reunião).
Âncoras no espaço: defina pontos no palco para “passado”, “presente”, “futuro” — ajuda memória e audiência.
Evite: apontar o dedo (ameaça), braços cruzados (defesa), balançar de um pé ao outro (ansiedade).
O pedido claro: onde a fala se converte em ação
Pedido claro é específico, mensurável, viável, temporal — e, se possível, acordado. Use a fórmula “Quem faz o quê até quando, com qual padrão, e como confirmaremos?”
Exemplos
Palco: “Se fez sentido, inscreva-se no QR Code até às 18h de hoje; a equipe confirma por e-mail em 24 horas.”
Reunião: “Carla, por favor, envie o rascunho do contrato com as cláusulas 4 e 5 revisadas até 10h de amanhã. Confirmamos por Slack.”
Vida: “Hoje, das 19h às 20h, deixo o celular fora do quarto. Você topa fazer o mesmo para jantarmos conversando?”
Checklist do pedido
[ ] Verbo de ação
[ ] Responsável nomeado
[ ] Prazo realista
[ ] Critério de qualidade
[ ] Canal de confirmação
Protocolos para momentos críticos
Feedback difícil (modelo em 6 passos)
Acordo de campo: “Posso te dar um feedback para melhorarmos juntos?”
Fato: “Na reunião de ontem, você interrompeu três vezes.”
Impacto: “Isso cortou a linha de raciocínio do cliente.”
Necessidade: “Precisamos de fluidez para avançar no contrato.”
Pedido: “Na próxima, anote e espere o sinal para falar.”
Acordo: “Combinado? Como posso te ajudar a lembrar?”
Conflito em reunião
Nomeie o objetivo comum: “Todos queremos a melhor solução no prazo.”
Reencamine: “Vamos testar as duas hipóteses: 10 min para cada.”
Feche com decisão ou próximo passo.
Palestra sob pressão
Reduza o texto do slide; use história breve.
Respiração 4–4–6 (4 inspira, 4 segura, 6 solta) 3 vezes antes de subir.
Primeira frase memorizada para ganhar tração.
Escuta que sustenta a fala
Falar bem inclui ouvir com método:
Loop de escuta: “O que eu entendi foi… confere?”
Rotular emoções: “Percebo frustração; é isso?”
Perguntas abertas: “O que seria um bom resultado para você?”
Espelho: repita as últimas 3–4 palavras para aprofundar.
Silêncio produtivo: espere 3 segundos após a resposta — o outro preenche.
Benefício: a escuta desarma e aumenta a aderência ao pedido.
Svādhyāya aplicado: rotina de autoestudo do comunicador
Jornal de fala (5 min/dia): “Onde alinhei intenção-forma-conteúdo? Onde falhei?”
Gravação semanal (10 min): avalie clareza, pausas, gestos.
Feedback 360° de confiança: peça a 3 pessoas “uma coisa para manter, uma para melhorar.”
Biblioteca pessoal: mantenha um caderno de histórias, dados e metáforas.
Simulações: 1 vez/semana, 10 min, com cenário real (palco, reunião, conversa difícil).
Exercícios práticos para palco, reunião e vida
1) “Fala de 60 segundos” (palco)
10s: tese em uma frase.
30s: evidência (dado + exemplo).
10s: benefício para a plateia.
10s: pedido de ação.
2) “Stand-up de 2 minutos” (reunião)
30s: status (o que foi feito).
30s: bloqueios (o que impede).
30s: próximos passos (o que farei).
30s: ajuda que preciso (pedido objetivo).
3) “Conversa que importa” (vida)
Observação: descreva o fato sem julgar.
Sentimento: nomeie a emoção (sem acusar).
Necessidade: valor em jogo.
Pedido: concreto e datado.
Mini-roteiros prontos (para adaptar)
Reconhecimento + ajuste de rota
“Seu empenho nos módulos A e B foi acima do esperado. Para fecharmos com excelência, preciso que revise os testes de integração hoje até 18h. Na prática: foco nos logs de erro 2 e 4. Combinado?”
Divergência entre pares
“Temos o mesmo objetivo — lançar sem bugs críticos. Proponho testarmos sua hipótese na base de 5% dos usuários por 48h e compararmos com a minha. Ao fim, seguimos com a que trouxer menor taxa de erro.”
Pedido pessoal
“Notei que, à noite, ficamos cada um no celular. Sinto falta de conversarmos. Proposta: 30 minutos sem telas após o jantar hoje. Topa experimentar e ver como nos sentimos?”
Checklist do comunicador antes de apertar “Enviar” (ou subir no palco)
Intenção clara em 1 frase
Estrutura escolhida (3-1-1, SCQA, etc.)
Pedido específico com responsável e prazo
Uma ideia por frase; frases enxutas
Gestos programados (no máx. 3 de ênfase)
Pausas marcadas antes do pedido e depois da ideia-força
Palavras-gatilho substituídas (sempre/nunca → dados)
Tom: assertivo, respeitoso, humano
Plano de 7 dias para incorporar a austeridade da fala
Dia 1 — Satya: transforme 3 julgamentos em observações factuais.
Dia 2 — Priya: reescreva um e-mail técnico em linguagem simples.
Dia 3 — Hita: inicie uma fala com “o que você ganha ouvindo isto”.
Dia 4 — Anudvega-kara: revise uma crítica, cortando ironias e hipérboles.
Dia 5 — Svādhyāya: grave 3 minutos e avalie pausas e timbre.
Dia 6 — Pedido claro: faça 3 pedidos com “quem–o quê–quando–padrão–confirmação”.
Dia 7 — Integração: entregue uma fala de 2 minutos aplicando todos os itens.
Perguntas rápidas (FAQ micro)
E se eu precisar ser duro?
Seja claro e específico, sem humilhar. Dureza sem desrespeito é possível.
E quando o outro está inflamado?
Reduza o volume, alongue as pausas, valide a emoção (“entendo que isso frustra”) e volte aos fatos.
E se não tiver dados?
Assuma a incerteza: “Hipótese inicial, vamos medir em 48h.” Transparência aumenta confiança.
Como evitar parecer manipulador?
Alinhe intenção declarada + benefício para o outro + dados. E esteja disposto a ouvir um não.
Conclusão: técnica a serviço da benevolência
A austeridade da fala da Gita não é ascetismo verbal — é disciplina consciente para dizer a verdade de modo que constrói. Quando você alinha intenção, forma e conteúdo, estrutura a mensagem, rege a voz com pausas e ritmo, coordena gestos e fecha com pedido claro, sua oratória deixa de ser apenas performance e se torna liderança em ação.
Fontes:
https://blog.bhaktimarga.org/why-you-should-read-bhagavad-gita-answers-to-lifes-problems