O período do regime militar no Brasil foi sempre um tema constante nas produções da cineasta Lúcia Murat. Com 22 anos, em março de 1971, a jovem militante foi presa e brutalmente torturada, permanecendo no cárcere até 1974. De sua experiência, além das marcas profundas que só a tortura pode trazer, ela guardou recordações das colegas de cela e da solidariedade feminina entre as detentas.
A participação das mulheres no movimento de resistência, por vezes apagada dos livros de história, vem à tona agora com seu mais recente filme, "Ana. Sem Título", que estreia nesta quinta (29) nos cinemas. Em busca de recuperar a história de artistas latino-americanas que foram invisibilizadas e censuradas por regimes ditatoriais, a equipe viajou pela América do Sul para filmar uma mescla entre documentário e ficção.
Livremente inspirado na peça “Há mais futuro que passado”, o longa mostra uma jovem atriz chamada Stela que resolve fazer um trabalho sobre cartas trocadas entre mulheres artistas durante os anos 70 e 80. Ela então parte em uma viagem para Cuba, México, Argentina e Chile para descobrir o que elas enfrentaram durante as ditaduras nesses países. Pelo caminho, encontra figuras importantes e ativistas, como as Mães da Praça de Maio, que perderam seus filhos durante a ditadura na Argentina.
"Quando chegamos nesses países, ficamos muito impactados pela quantidade de museus, de espaços de memória, de preocupação de educar a juventude em relação ao passado. E você não tem isso no Brasil, e por não termos estamos vivendo essa tragédia. Se tivesse educação para que as pessoas soubessem o que aconteceu durante a ditadura, será que tanta gente estaria na rua pedindo a volta do regime e apoiando a tortura?", questiona Lúcia.
Ana. Sem Título
Nas cartas, Stela também descobre a personagem Ana, uma artista brasileira que teria desaparecido sem deixar rastros. O filme se torna, então, uma busca incessante por essa mulher, negra e lésbica, que foi apagada da memória coletiva. "Eu acho que a Ana representa todas nós, todas as artistas brasileiras que foram silenciadas, humilhadas, torturadas. É a representação de um tipo de mulher forte, rebelde e talentosa", explica a diretora.
Lúcia trouxe suas memórias pessoais para criar uma relação de intimidade e identificação entre as artistas, que recorriam ao afeto e à solidariedade para sobreviver em tempos tão difíceis. "Eu fiquei presa no Brasil em um presídio feminino, e temos uma relação muito forte até hoje, porque vivemos essa realidade juntas", lembra.
Para a diretora, a nova onda feminista vem para recuperar essas artistas pioneiras, que lutaram, criaram e são precursoras do movimento. Na opinião dela, as mulheres jovens têm um papel importante não apenas no campo artístico, mas também no político. "Uma das grandes campanhas contra o Bolsonaro foi feita por mulheres, com o #EleNão. Os problemas que o filme levanta acabaram tomando uma grande importância pelo momento que estamos vivendo", opina.
Confira a entrevista completa no vídeo!