No fim dos anos 1940, Roberto Rossellini havia virado um herói na Itália, mas não foi por causa de Roma, Cidade Aberta, seu clássico de 1946, que críticos e historiadores consideram o marco zero do neorrealismo, por mais que tenha sido precedido por experimentos de Luchino Visconti (Obsessão) e Vittorio De Sica (A Culpa É dos Pais), ambos de 1942. As feministas poderão ficar arrepiadas pelo que será visto como machismo dos italianos, mas a glória de Rossellini devia-se ao romance com Ingrid Bergman. Depois de ver Roma Città Aperta, a maior estrela de Hollywood, na época, ofereceu-se, incondicionalmente, para trabalhar com ele. Fizeram Stromboli, em 1949. Ingrid largou tudo - marido, família, filhos - e iniciou uma união de sete anos e cinco filmes. Mas, em 1956, Rossellini foi filmar uma série na Índia. Envolveu-se com uma indiana, Sonali Das Gupta, e para a mídia da época o escândalo foi maior ainda. A Bergman, abandonada! Repudiada!
Iniciou-se nova fase. Índia foi recebido com frieza, ou pelo menos sem entusiasmo no Festival de Cannes, onde as declarações do autor sobre 'a morte do cinema' também provocaram polêmica, e até irritação. O cinema, morto, no ano da consagração da nouvelle vague com François Truffaut e Alain Resnais? Em 1958/59, Rossellini parecia liquidado. Críticas reticentes, quando não hostis. Somente Jean-Luc Godard fez a defesa intransigente de Índia. Chegou a dizer que a nouvelle vague já era passé e Rossellini inaugurava o cinema do mundo. O diretor andava mal. Devia os olhos da cara. A Bergman, que parecia ter aceitado muito bem o romance com Sonali - ela também tivera um affair com Lars Schmidt enquanto Roberto esteve na Índia - entrou na Justiça, pedindo a guarda dos filhos. Havia recebido o Oscar por Anastásia, a Princesa Esquecida, de 1956 - que foi seu passaporte de retorno a Hollywood -, apresentava com sucesso uma peça em Paris (Chá e Simpatia), ameaçava casar-se com Lars e mudar com as crianças para a Suécia. Rossellini instalou-se temporariamente na França, onde foi ajudado, financeiramente, por amigos (Truffaut, Jean Renoir, o crítico André Bazin, que morreria em seguida).
Orgulhoso, o diretor, que se vangloriava de fazer cinema experimental, não comercial, começou a encarar a necessidade de aderir ao segundo. Precisava fazer caixa, e rápido. Recusou a oferta do produtor Carlo Ponti para fazer Duas Mulheres - e o filme foi feito com Sophia Loren no papel da mãe; originalmente, ela seria a filha; Sophia ganhou um mundaréu de prêmios - foi melhor atriz em Cannes, venceu o prêmio da Associação de Críticos de Nova York, o Oscar, o Bambi, o Bafta, o David di Donatello etc) -, mas terminou aceitando Il Generale della Rovere. Lançado no Brasil como De Crápula a Herói, é um de seus melhores filmes. O melhor? Pode até ser. Em Veneza, dividiu o Leão de Ouro com outra produção italiana - A Grande Guerra, de Mario Monicelli. E aqui cabe uma contextualização. Com a morte de Pio XII, tornou-se papa um cardeal bonachão, Giovanni Roncalli. Com o nome de João XXIII, ele provocou uma verdadeira revolução da igreja. Começou exortando a Itália a encarar o próprio passado, fazendo um exame de consciência da época do fascismo.
Houve um revival da guerra com Rossellini, De Sica e muitos outros - a guerra de Monicelli era a 1.ª. Baseado numa história real que foi proposta a Rossellini por... Amidei, mostra um crápula que atua como informante dos nazistas, aliados aos fascistas. Esse homem vai preso, sob a falsa identidade do General Della Rovere, que existiu de fato e foi o líder da resistência. A ideia é que ele ganhe a confiança dos presos e colha informações para identificar militantes e desbaratar o movimento. Na cadeia, Bardone descobre uma dignidade que nem ele sabia possuir. Objeto de admiração e estima dos demais presos, ele cola ao papel e prefere morrer com honra a delatar. Akira Kurosawa nunca assumiu, mas é provável que tenha sido esse filme a inspiração para Kagemusha, a Sombra do Samurai, 20 anos depois.
Apesar do prêmio em Veneza, De Crápula a Herói não foi uma unanimidade. Antigos militantes comunistas acusaram Rossellini, como bom cristão, de empobrecer o debate político por meio da saída humanista - sacrificial. O filme já nasceu com o compromisso de estar pronto para Veneza. Entre o início da filmagem, no fim de julho, e a apresentação no Lido foram menos de dois meses. Dois! Ele filmava e seu filho editava o material e trabalhava o som à noite. Rossellini usou a lente Pancinor, que foi a primeira zoom. Para tornar a rodagem mais rápida, adotou o plano-sequência. Vittorio De Sica é quem fazia o papel, e o diretor revelou depois que seu maior desafio foi levar o consagrado ator e diretor à interpretação mais despojada de sua carreira. Ele pedia sempre 'menos', e não repetia as cenas. Certa vez, numa cena chave, o produtor pediu-lhe que refilmasse. De Sica repetiu, e tratou de fazer melhor ainda, mas sabia que Rossellini não abriria mão de usar a primeira tomada, o que ocorreu. A crítica elogiou o profissionalismo, o acabamento. Para o diretor, experimentalista convicto, o elogio soou como ofensa. Ele tendia a esquecer o filme entre os seus melhores, mas é um clássico, e De Sica é genial.
Onde assistir:
- À venda em DVD