Por que esquecer é benéfico, segundo neurocientista

A imperfeição da memória e as lembranças falsas são elementos essenciais de uma mente flexível, argumenta o neurocientista Charan Ranganath em seu novo livro.

18 mai 2024 - 20h24
(atualizado em 20/5/2024 às 20h10)
Há vários pontos positivos sobre nossa mente imperfeita
Há vários pontos positivos sobre nossa mente imperfeita
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"A memória", escreve o neurocientista Charan Ranganath em seu novo livro Why We Remember ("Por que nos lembramos", em tradução livre), "é muito, muito mais do que um arquivo do passado; é o prisma através do qual vemos a nós mesmos, aos outros e ao mundo".

Ranganath é professor de psicologia na Universidade da Califórnia, na cidade de Davis, e passou os últimos 30 anos explorando os processos cerebrais por trás da nossa capacidade de recordar, de lembrar — e de esquecer.

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Ele argumenta que muitas das nossas suposições comuns sobre a memória são equivocadas; suas aparentes falhas muitas vezes surgem de seus recursos mais úteis, criando uma flexibilidade cognitiva que tem sido essencial para a nossa sobrevivência.

Ele conversou com David Robson, jornalista especializado em ciência, a respeito desse conhecimento de ponta sobre o cérebro e as maneiras através das quais podemos usar esse saber para fazer melhor uso de nossas mentes perfeitamente imperfeitas.

BBC - Seu livro está cheio de noções contraintuitivas. Vamos começar com a ideia da "aprendizagem baseada em erros". Por que aprendemos melhor quando nos permitimos cometer erros?

Charan Ranganath - As memórias são formadas por meio de mudanças na força das conexões entre os neurônios. Algumas destas ligações não serão tão boas, enquanto outras serão mais fortes e eficazes.

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O princípio da aprendizagem baseada em erros significa que, quando você tenta recuperar essas memórias, sua lembrança sempre será um pouco imperfeita.

E assim, quando o cérebro tenta extrair essa memória e você a compara com a informação real, essas redes podem enfraquecer os vínculos ruins e fortalecer os vínculos bons.

A implicação é que extrair o material que você está tentando aprender é a melhor maneira de aprender mais, porque expõe essas fraquezas e, portanto, dá ao seu cérebro a chance de otimizar essas memórias.

É por isso que técnicas de aprendizagem ativa — como dirigir por um bairro em vez de apenas procurá-lo no Google Maps, ou atuar em uma peça em vez de ler o roteiro repetidas vezes — são tão eficazes.

Nossa memória maravilhosamente falha faz parte da nossa identidade
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC - Muitos de nós nos sentimos frustrados com as lacunas em nossa memória, mas você propõe que o esquecimento costuma ser benéfico. Por quê?

Ranganath - Uma analogia que gosto de fazer é imaginar que vou até sua casa e questiono: Por que você não é acumulador? Por que você simplesmente não guarda tudo?

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Se não esquecêssemos nada, estaríamos acumulando memórias e você nunca conseguiria encontrar o que deseja, quando deseja.

No momento, estou hospedado em um hotel e não faria sentido lembrar o número deste quarto daqui a duas semanas. Da mesma forma, pense em todas as pessoas por quem você passa na rua. Você realmente precisa memorizar todos os seus rostos?

BBC - Por que nos tornamos mais esquecidos à medida que envelhecemos?

Ranganath - O problema, à medida que envelhecemos, não é necessariamente que não possamos formar memórias, mas que não nos concentramos nas informações que precisamos lembrar.

Tornamo-nos mais distraídos e todas essas coisas fúteis surgem às custas do que importa. E assim, quando tentamos recordar essas memórias, não conseguimos encontrar a informação que procuramos.

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BBC - Que estratégias podemos usar para evitar isso e melhorar a qualidade das nossas memórias?

Ranganath - Existem três princípios básicos. Um deles é a distinção. Nossas memórias competem entre si e, portanto, quanto mais você conseguir fazer algo se destacar, melhor.

Memórias vívidas associadas a imagens, sons e sentimentos únicos — são elas que vão ficar por aqui. Portanto, focar nos detalhes sensoriais, em vez de ficarmos presos na cabeça, realmente nos ajuda a lembrar melhor.

A segunda estratégia é encorajar uma maior organização das suas memórias de uma forma que as torne mais significativas. No livro, discuto o método do "palácio da memória", que envolve associar a informação que você deseja aprender com a informação que você já possui.

Em terceiro lugar, podemos criar pistas. Procurar uma memória é muito trabalhoso e algo sujeito a erros; é melhor que as memórias surjam em nossa cabeça. Criar dicas pode ajudar que isso aconteça.

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Sabemos, por exemplo, que as músicas podem evocar naturalmente memórias de períodos específicos da sua vida. E há muitas outras dicas do dia a dia que você pode usar.

Se estou tentando me lembrar de levar o lixo para fora, vou me imaginar caminhando até a porta e depois olhar para a lata de lixo. Como resultado, quando eu chegar à porta na vida real, isso servirá como uma dica de que devo levar o lixo para fora.

'Pistas' no dia a dia podem turbinar a memória
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC - Além de perdermos memórias, podemos eventualmente descobrir que nossas lembranças incluem detalhes falsos que não correspondem aos acontecimentos reais. Por que isso ocorre?

Ranganath - Temos "esquemas" que nos ajudam a lembrar com menos esforço.

Imagine que você acabou de ir ao banco. Você já tem muito conhecimento sobre os tipos de eventos que acontecem no banco e os tipos de coisas que não acontecem.

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Isso permite restringir o alcance das informações que você precisa lembrar. Os esquemas atuam como o tecido conjuntivo que permite pegar esses novos [dados] e aplicá-los. Mas às vezes os esquemas preenchem muitos espaços em branco, com detalhes errados.

A segunda razão é que as memórias mudam com o tempo. Isso é muito importante, porque é desejável atualizar as memórias.

Se você viu um parente que não via há muito tempo e seu rosto mudou em relação à primeira vez que você o viu, você precisa criar uma memória mais precisa da aparência dele. Mas às vezes a nossa imaginação pode infiltrar-se na memória.

BBC - De que forma a memória é um processo colaborativo?

Ranganath - Quando compartilhamos memórias com outras pessoas, isso pode fazer com que as memórias sejam atualizadas. Quando estou explicando um acontecimento para você, o ato de te contar aquela história pode mudar a maneira como me lembro dela.

Suas reações à maneira como conto a história, por exemplo, moldarão minha memória dela mais tarde; pode se tornar mais engraçada.

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Ou você pode até me dar algumas informações adicionais — mas errôneas — que podem penetrar na minha memória: fico confuso entre o que realmente aconteceu e o que você me disse enquanto eu explicava o que aconteceu.

Eu diria que muitas das nossas memórias já não são [puramente] nossas: são memórias coletivas.

BBC - Como sua pesquisa científica moldou sua relação com suas próprias memórias?

Ranganath - Escrever o livro, em particular, deu-me um incentivo para preservar a minha memória. Agora, estou tentando fazer exercícios regularmente e estou muito atento à minha dieta, para garantir que manterei minha saúde cognitiva na velhice.

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