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Em bares de Paraisópolis, enfermeiro oferece informações sobre saúde para homens

Francisco Paiva criou, em 2013, o Conversa de Boteco, que promove encontros mensais na comunidade; cerca de 1,2 mil homens já participaram do projeto

1 jan 2020 - 03h11
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SÃO PAULO - Ao caminhar pelas ruas estreitas de Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, o enfermeiro Francisco Paiva, de 44 anos, notou o contraste da presença masculina no dia a dia da unidade básica de saúde (UBS) da comunidade e nos bares da região. Escassez nas consultas, frequência alta nos balcões. Foi assim que, em 2013, ele criou o Conversa de Boteco, um espaço para que homens se reúnam para discutir sobre doenças, família, anseios e vícios, além de assumir o compromisso de cuidar da própria saúde.

"Minha gestora pediu atividades voltadas para a saúde do homem. Andando, vi que os homens se reuniam nos bares e conversei com o dono de um deles. Ele ficou surpreso com a ideia. Fomos com a proposta de fazer uma palestra, mas surgiram outros assuntos. Eram sete participantes. Depois, dez, 15. Chegamos a ter 30 homens em encontros", lembra Paiva, que é especialista em saúde pública e mestre em saúde ambiental.

As reuniões são mensais e mais de 80 encontros foram realizados nesses seis anos de projeto. A estimativa é de que cerca de 1,2 mil homens já participaram da iniciativa em dez bares da região, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde.

"Falamos sobre infecções sexualmente transmissíveis, drogas, alterações posturais, depressão, masculinidade, família e até questões sobre o cuidado com o bairro, coleta de lixo." De lá, já saem com consultas agendadas e ainda no bar são submetidos a testes rápidos de sífilis, hepatite e HIV pelos agentes de saúde.

Desde o primeiro encontro, só houve uma pausa. "Neste ano, paramos por cinco meses por causa da campanha do sarampo", diz Paiva. Parecia que ninguém compareceria à reunião de novembro. O boteco do Zezinho Baixinho estava vazio. Pouco antes das 14 horas, horário marcado para o início da conversa, agentes comunitárias de saúde abordavam homens na calçada e entregavam os convites.

Enquanto Paiva não chegava, elas pegaram cadeiras de outros bares e as organizaram ao redor de uma mesa de sinuca.

Os homens vão chegando aos poucos e o grupo cresce com a chegada do enfermeiro, que é reconhecido por todos. Ele faz questão de cumprimentar não só com um aperto de mão firme, mas com um abraço apertado e acompanhado por um tapinha no ombro. Ao conversar, Paiva mantém o contato olho no olho.

"O maior desafio é tornar isso uma linha de cuidado e trabalhar a promoção da saúde no pós-encontro. Mas a gente vê como o encontro pode ser potente fora do bar, porque formamos um vínculo."

O primeiro a receber a iniciativa foi o comerciante Isaías Luís Nascimento Gomes, de 53 anos, que também abriu a discussão. "As mulheres têm os grupos delas e nós também temos os nossos. A gente tem de saber que existem várias doenças e os médicos sabem dos problemas que os homens têm. A doença enfraquece qualquer ser humano."

Apoio

No começo, todos estão tímidos. Com uma fala informal, Paiva deixa claro que não existe certo nem errado e a equipe de saúde está no local para dar apoio. Ninguém será julgado. "A ideia é discutir sobre as ideias de vocês."

O vigilante José João da Silva, de 60 anos, quebra o silêncio e pergunta: "Diabete é coisa séria mesmo?". O enfermeiro pede que os presentes compartilhem seus conhecimentos sobre a doença. Um participante relembra a morte da mãe, que precisou amputar uma das pernas. O grupo fica sério e Paiva começa a dar explicações sobre o que é a doença e aborda a questão da prevenção, de alimentação a prática de atividades físicas.

Até uma receita de tempero caseiro foi passada pelo enfermeiro. "Não tira o nosso tempo e é fácil. Faço no domingão à tarde e fico sossegado. A gente pode fazer uma oficina dessas 'paradas', chamar uma galera para fazer os temperos naturais."

Depois, Paiva indaga Silva se, após as explicações, ele começou a achar que diabete é coisa séria. O vigilante compreende a gravidade, mas tem outra dúvida. "Quem tem diabete pode tomar cachaça?" Todos riem. É a deixa para que a conversa entre em um dos temas mais frequentes. "Vou atuando como mediador. O vício em álcool e drogas é algo que pega bastante e isso nos leva a outros projetos, como o Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas)."

O técnico de manutenção José Ailton de Paula, de 50 anos, participava do encontro pela primeira vez e, muito emocionado, fez um longo desabafo. "Eu tento cuidar de mim, mas não tem jeito. Por causa da bebida, a pessoa não come, não trabalha, não consegue se levantar. E não é fácil parar sozinho. Perdi minha família e meu emprego."

Após o depoimento, Paiva sugere que o grupo diga palavras de apoio para o homem, que não esconde o choro. São citadas luta, força, união. "Estamos juntos", finaliza um dos presentes.

Ao longo do encontro, todos estavam tão concentrados que nem mexiam no celular. Um deles até rejeitou ligações. Ao fim, surge a ideia de criar um grupo no WhatsApp. O enfermeiro indaga qual vai ser o nome e fica definido que será "papo de boteco". Colocar uma variação do nome do projeto não é considerado um problema. "A ideia é que a proposta se fortaleça e eles assumam o grupo para eles", afirma.

Uma equipe formada por auxiliares de enfermagem, uma psicóloga, agentes de saúde e estudantes de Medicina acompanha a reunião, que é uma ponte para levar os homens para o atendimento na UBS.

"A iniciativa é legal, porque surge muito preconceito quando vai falar de saúde. É uma oportunidade de desabafar e de ver que a gente não está sozinho. Isso tinha de vir de criação. Falta passar essa ideia de pai para filho", reflete o produtor cultural Valdemir José Trindade, o Guga Brown, de 38 anos.

Estadão
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