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Doralice Góes: a sobrevivente de botulismo que virou caso raro no Brasil após 10 meses na UTI

Servidora pública brasileira foi diagnosticada com a doença depois de consumir um molho pesto artesanal

6 jul 2025 - 04h59
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Doralice lançou um livro para alertar sobre os perigos do botulismo
Doralice lançou um livro para alertar sobre os perigos do botulismo
Foto: Arquivo Pessoal/Cedido ao Terra

A servidora pública e palestrante Doralice Góes, de 48 anos, não imaginava que sua vida mudaria para sempre depois de consumir um molho orgânico sem data de validade. No dia 23 de janeiro de 2022, Dora consumiu três colheres do molho com torradas e um vinho. Dois dias depois, ela estava internada na UTI com o diagnóstico de botulismo --doença rara e grave causada pela toxina da bactéria Clostridium botulinum. 

O produto foi comprado em uma feira em Brasília (DF), onde ela mora, em 31 de dezembro de 2021. "Como eu estava fazendo uma desintoxicação, só comi no dia 23 de janeiro, domingo à noite. Estava delicioso. Essa doença não muda o sabor do alimento, ela é invisível", contou em entrevista ao Terra.

Dora relatou que não sentiu nada no dia seguinte. No entanto, dois dias depois, ela passou mal após fazer uma ginástica funcional no prédio onde morava. "Quando eu terminei de fazer, meu corpo não queria ficar em pé. Eu senti uma fraqueza diferente que eu nunca senti antes, mas pensei que fosse do exercício. Voltei pra casa, tomei banho e fui dirigindo até o meu trabalho", disse. 

Ela trabalhou por cerca de duas horas antes de ir para o hospital. "Quando eu cheguei no trabalho, as mãos e pernas estavam querendo formigar e a minha língua começou a enrolar. Meus colegas falavam: 'Dora, a gente não está entendendo o que você está falando'. Pensaram que eu estava tendo um AVC".

A servidora dirigiu por mais de 20km até chegar ao hospital mais próximo da casa dela. Ao chegar no local, suas pernas não se moviam mais. Meia hora depois, ela parou de respirar e ficou totalmente tetraplégica: "Não mexia nada no rosto, nem abria os olhos. Levei três meses para conseguir abrir os olhos".

Dora ficou internada por sete meses no Hospital de Águas Claras, em Brasília. Depois, foi transferida para o DFStar, onde ficou por três meses e meio. 

Diagnóstico de botulismo

Os médicos não entenderam a princípio que se tratava de botulismo. O botulismo é causado pela bactéria Clostridium botulinum, que gera uma toxi-infecção alimentar. A toxina produzida pela doença bloqueia a comunicação entre os nervos.

As hipóteses eram de que Dora estava com AVC de tronco cerebral, Síndrome de Guillain-Barré --distúrbio autoimune raro no qual o sistema imunológico ataca os nervos periféricos do corpo-- ou reação à vacina da Covid-19. 

No entanto, um neurologista foi chamado para atender a palestrante e pediu para que ela tentasse mexer qualquer parte do corpo. "Eu mexi, muito devagarzinho, dois dedos do pé direito. Era a única coisa que eu mexia no meu corpo inteiro. Na hora, ele falou: 'Isso aqui é botulismo. Eu estudo essa doença há 10 anos e nunca havia visto um caso'. Mas a equipe médica não acreditou nele", explicou. 

Doralice sobreviveu ao botulismo após dez meses internada
Doralice sobreviveu ao botulismo após dez meses internada
Foto: Arquivo Pessoal/Cedido ao Terra

A equipe médica, então, optou por tratar Dora como uma paciente de Guillain-Barré. Mas o neurologista que suspeitou de botulismo agiu rapidamente para conseguir uma liberação do soro antibotulínico junto ao Ministério da Saúde.

A doença é de notificação compulsória, por isso, o médico conseguiu acionar a Vigilância Sanitária do Distrito Federal para que os alimentos da casa de Dora fossem investigados. 

"Só existe um remédio para o botulismo, é a antitoxina, o soro antibotulínico. No Brasil, esse soro fica guardado em apenas cinco lugares, nenhum hospital tem ele. É assim no mundo todo. Na suspeita, ele é ministrado. Eu recebi o soro quatro dias após ter consumido o alimento. Eu não morri, mas o estrago já estava feito no meu corpo", disse. A confirmação de botulismo tipo A veio apenas 50 dias depois com um laudo.  

"Eu respirei por aparelho nove meses, fui traqueostomizada. Aos sete meses, o hospital me desentubou e eu quase morri de novo. Retive gás carbônico no meu corpo, por isso fui transferida para um outro hospital." 

Doralice Góes na UTI
Doralice Góes na UTI
Foto: Arquivo Pessoal/Cedido ao Terra

Mais de 300 dias internada

O apoio da família e dos amigos foi essencial para que Dora evoluísse em sua recuperação. Ela afirmou que sobreviver ao botulismo foi a coisa mais difícil que lhe aconteceu. "A gente aprende a dar valor às coisas. Até hoje eu vejo o sol e sorrio. Fico feliz em ver a lua, tomar um banho quentinho e até dormir reta na minha cama. Fiquei um ano na UTI, levei dois anos e meio me reabilitando e ainda sigo na reabilitação."

A irmã de Dora foi quem encontrou uma maneira de se comunicar com ela durante seu período na UTI. Ela percebeu que, como Dora conseguia mexer os dedos do pé, talvez ela conseguisse "conversar". E funcionou. Com toda paciência e cuidado, a irmã a ajudou a escrever frases com os dois dedos dos pés.

"A primeira frase foi: 'Estira minhas pernas'. Elas estavam dobradas, e me dava mais câimbra ainda. A segunda foi: 'Alergia ao cobertor do hospital'. E aí eles viram que eu estava consciente."

Mesmo com a recuperação, Dora ainda tem sequelas

"Meu propósito de vida é conscientizar as pessoas que essa doença existe. Eu me sinto útil fazendo isso. Existem muito mais casos do que imaginamos. Atualmente, eu trabalho em teletrabalho pelo Tribunal de Justiça, dou palestras e sou muito ativa nas redes sociais. Ao invés de me aposentar por invalidez, arrumei outras ocupações", revelou ao Terra.

Segundo Dora, ela ainda tem sequelas do botulismo. "Fiquei com muita dor na lombar, hoje, entre o nível 2 e 3. Mas chegou a ser 10, nem morfina passava a dor. Como tive lesão no cérebro, fiquei uma pessoa mais devagar. Também me tornei PCD". 

Dora ficou com uma dívida de R$ 400 mil pelo tempo que ficou internada. "É descontado mensalmente do meu salário R$ 1.500 desde o segundo mês de UTI. Vou passar 20 anos pagando essa dívida".

Doralice Góes
Doralice Góes
Foto: Arquivo Pessoal/Cedido ao Terra

A ideia de palestrar sobre a doença veio da própria experiência da servidora pública. "Desde que saí do hospital, passei a estudar a fundo a doença e acompanhar casos globais. Já dei 29 palestras na indústria, hospitais, faculdades. As pessoas precisam se atentar a essa doença, que não tem vacina para o ser humano, apenas para o gado." 

Em dezembro do ano passado, Dora lançou o livro "Botulismo: um risco invisível à vida", no qual ela alerta a população em geral, produtores de alimentos e médicos sobre os perigos do botulismo. Além disso, ela também relata casos da doença ao redor do mundo -- que ainda apresentam subnotificação.

"Não adianta parar de comer um alimento, os alimentos precisam ser seguros. Essa é a minha batalha, essa de conscientizar que a doença existe. Os médicos não acreditam que a doença existe em nossos dias. Ela é subnotificada no mundo inteiro, não é só no Brasil", completou.

Fonte: Redação Terra
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