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4 erros desastrosos que líderes cometem durante as epidemias

O primeiro desses erros é a inclinação para negar a existência da doença. Ou, se ela existe, diz-se que não é grande coisa.

4 mar 2020 - 12h10
(atualizado às 12h48)
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Quando confrontados com problemas do presente com o coronavírus, às vezes o melhor é observar o passado. Quando escrevi Get Well Soon (Estimo suas melhoras), meu livro a respeito da resposta da sociedade a surtos de doenças ao longo da história, encontrei incontáveis exemplos de lideranças sábias e compassivas diante das epidemias. Infelizmente, também encontrei o oposto.

Pessoas usam máscaras para se proteger em Jacarta
Pessoas usam máscaras para se proteger em Jacarta
Foto: Willy Kurniawan / Reuters

Como aprendi, as lideranças que se veem diante de epidemias como a do coronavírus sempre correm o risco de cometerem um a quatro erros catastróficos. Algumas chegam até a cair em duas ou três dessas armadilhas. Trump e seu governo parecem determinados a cometer todos os quatro.

O primeiro desses erros é a inclinação para negar a existência da doença. Ou, se ela existe, diz-se que não é grande coisa. Recentemente, Trump afirmou em relação ao coronavírus: "Quando temos 15 pessoas (infectadas) — e, em questão de dois dias, essas 15 já serão quase zero — vemos que fizemos um ótimo trabalho".

O número de casos não será quase zero tão cedo. É verdade que a maioria das pessoas vai ficar bem, mesmo se contraírem o coronavírus. A proporção de casos fatais foi estimada inicialmente em 2% (normalmente, a gripe sazonal tem 0,1% de casos fatais), e seu R0 (R zero) — número que indica quantas pessoas são contaminadas para cada paciente infectado — foi calculado entre 1,4 e 2,5.

Não parece nada terrível. Dito isso, essa é a mesma proporção de casos fatais da epidemia de influenza de 1918, que teve R0 de 1,8 e, mesmo assim, matou 30 milhões de pessoas (das quais 675 mil eram americanas).

Essa epidemia foi pessimamente administrada pelo presidente Woodrow Wilson. Conforme a epidemia se espalhava, os funcionários do governo insistiam que tudo estava sob controle, e Royal Copeland, comissário de saúde de Nova York, alegou: "Ninguém ouviu falar de casos de gripe entre nossos soldados, não é? Aposto que não, e nem vão ouvir".

Manchetes de jornais como o El Paso Herald diziam: "Boatos maliciosos a respeito da epidemia de influenza serão combatidos". Se as autoridades tivessem levado a sério as informações que chegavam de todo o mundo e aceitado que a gripe de 1918 não "acabaria sozinha", muitas vidas poderiam ter sido salvas.

Outro erro que as lideranças tendem a cometer é suprimir informações científicas. Durante a epidemia de influenza de 1918, boa parte da resposta errada das autoridades emanou do fato de os jornais serem incentivados a não publicar nada que pudesse afetar o "moral" durante a 1ª Guerra Mundial.

A supressão das informações significou que um público mal-informado ficou sem saber o que estava ocorrendo e, compreensivelmente, entrou em pânico quando as pessoas começaram a morrer. Remédios falsos proliferaram. Houve ao menos um caso de um homem que se recusou a usar uma máscara na rua e foi baleado, enquanto outros cortaram a garganta de parentes que contraíram a doença.

A Cruz Vermelha americana relatou que "o medo e o pânico em relação ao influenza são generalizados, lembrando o terror da Idade Média diante da peste". Na zona rural do Kentucky, as pessoas começaram a morrer de fome porque não se atreviam a sair de casa para buscar comida. Além de haver poucos programas para conter esses efeitos nocivos, muitos simplesmente não entendiam o que estava ocorrendo. As autoridades da época acharam que a cobertura da doença com informações precisas prejudicaria as chances dos Estados Unidos de ganhar a guerra.

Igualmente, Trump parece preocupado com a possibilidade de os fatos prejudicarem suas chances de reeleição, alegando que a cobertura do coronavírus seria a nova "farsa" dos democratas. Todas as mensagens do governo precisam passar pelo vice-presidente Mike Pence, enquanto os funcionários de outras agências, como Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, foram orientados a não compartilhar informações sem autorização. Limitar a circulação de informações científicas raramente traz bons resultados; em vez disso, temos cidadãos confusos e despreparados que começam a buscar informação nas teorias conspiratórias.

O terceiro erro cometido por líderes ineptos diante das epidemias consiste em responsabilizar as minorias vulneráveis. É claro que nem sempre é necessário dar esse passo, pois os cidadãos comuns costumam eleger sozinhos as minorias como bodes expiatórios para muitos problemas, incluindo as doenças.

Durante a Peste Negra, a culpa recaiu sobre os judeus. Centenas deles foram queimados vivos por causa do sentimento antissemita que culpou os judeus por envenenar os poços com a peste bubônica. O papa Clemente tentou acabar com a histeria em 1348 afirmando que aqueles que acreditavam na responsabilidade dos judeus tinham sido "seduzidos por aquele mentiroso chamado diabo". Apesar de insistir ao clero para que protegesse os judeus, os esforços dele tiveram eficácia moderada, na melhor das hipóteses. Ao menos ele fez o esforço.

Os apelos de Clemente diferem muito, por exemplo, dos funcionários da Secretaria de Saúde de San Francisco que, em 1876, declararam sem nenhuma prova que a varíola era espalhada por "chineses inescrupulosos, mentirosos e traiçoeiros que desrespeitam nossas leis sanitárias".

Em 1901, o superintendente sanitário de Manhattan, Frederick Dillingham, adotaria postura semelhante em relação a uma minoria diferente, dizendo, "Ninguém sabe o estrago feito por esses italianos" em se tratando da varíola. Naquela época, lares de imigrantes em Nova York começaram a ser inspecionados sob direção do Gabinete de Doenças Contagiosas. Moradores que apresentassem o menor sinal de problemas de saúde eram separados de suas famílias e levados até a Ilha North Brother. Muitos deles nunca mais viram os filhos.

Atualmente, o governo Trump fez dos imigrantes seu bode expiatório, alegando que "a política dos democratas de fronteiras abertas é uma ameaça direta à saúde e ao bem estar de todos os americanos". Além disso, Trump pensa em fechar a fronteira ao sul do país — apesar de o vírus não vir do México.

E tudo isso apesar do consenso entre os especialistas em saúde pública segundo os quais a proibição às viagens pouco faz para deter as epidemias, podendo até agravá-las, o que indica que o governo está mais preocupado em apontar um culpado do que em fazer a coisa certa. Em comparação, a atitude do papa Clemente impressiona.

Por último, o quarto erro cometido pelas lideranças ineptas está na tendência de dizer que aqueles que adoecem são pecadores — ou, no mínimo, mereceram esse destino. Por exemplo, podemos analisar a primeira coletiva de imprensa da Casa Branca a respeito da Aids com o assessor de imprensa de Ronald Reagan, Larry Speakes. Quando indagado a respeito da doença que devastava a comunidade gay, ele riu do repórter. "Eu não tenho a doença! E você? . . . Ninguém aqui a vivenciou pessoalmente."

A implicação de que a Aids afetava os outros, de quem podia-se caçoar, perdurou durante boa parte da presidência de Reagan. O próprio presidente só falou na crise em si em 1985, hesitando em compartilhar as informações com quem ainda estava na escola, alegando: "As informações a respeito da Aids não podem ser consideradas 'neutras' em termos de valores. Afinal, em se tratando da prevenção da Aids, moralidade e medicina ensinam o mesmo, não?"

O cidadão comum parece ter aprendido péssimas lições com esses comentários, e em 1988 a revista Christianity Today informou que 37% dos leitores acreditavam que a "Aids é um castigo de Deus para os homossexuais e usuários de drogas". Um dos resultados desse discurso é a alta probabilidade de as pessoas que contraíram a doença manterem segredo em relação a ela, por medo de serem constrangidas, e aqueles que defendem tratamentos melhores podem ser criticados por fazê-lo.

Com seis mortes decorrentes do coronavírus nos EUA até a tarde de segunda feira, ainda não estamos nesse ponto, mas parece possível que cheguemos lá. Se o presidente Dwight D. Eisenhower facilitou um programa de vacinação infantil gratuita com a criação da vacina de Jonas Salk contra a pólio — declarando que a vacina, não patenteada, estaria disponível; a "todos os países interessados nesse conhecimento, incluindo a União Soviética" — Trump fez declarações sem base nenhuma, como sua alegação de que "muitas doenças infecciosas chegam pela fronteira", mesmo sem estarmos no meio de uma crise de saúde pública.

Com Pence no comando da resposta do governo ao coronavírus — o mesmo Pence que é cristão conservador, inimigo do planejamento familiar e responsável por um surto de HIV durante seu mandato como governador de Indiana — é difícil esperar que as vítimas da doença sejam tratadas com gentileza.

Tudo isso pode parecer motivo para desespero. Mas, no combate às doenças, há também muitos momentos de esperança. Esses ocorrem quando as pessoas se reúnem e trabalham juntas com base na calma, na compaixão e na união, em vez do medo e do desprezo. Com frequência, é mais fácil culpar os doentes do que lidar com o fato de que qualquer um de nós pode adoecer. Quando as doenças estão matando, é da natureza humana mostrar que somos diferentes daqueles que são infectados (talvez menos vulneráveis do que eles).

Mas os humanos discriminam; as doenças, não. Não é agora que começarão a discriminar. Os Estados Unidos são um país cientificamente avançado, com o potencial de cuidar de seus cidadãos se enfrentarmos os problemas de frente, sem procurar bodes expiatórios. Seria ótimo se os líderes americanos começassem a fazer jus a esse quadro.

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Estadão
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