Impacto além do ambiental: derretimento das geleiras na Suíça pode acabar com costumes da região
Famílias agricultoras lutam para se adaptar às mudanças e manter a tradição na região; governo suíço busca medidas
Por séculos, os agricultores suíços mantiveram uma tradição. Antes do início do outono, o gado, cabras e ovelhas são levados para pastar nas montanhas nos meses de clima mais quente. A tradição foi criada na Idade Média para economizar a grama dos vales para a chegada do inverno, o método de “veraneio” mudou a paisagem do interior para belas florestas e pastagens.
O costume está tão inserido na cultura que a manutenção da paisagem foi inserida na Constituição Suíça como parte essencial da agricultura. Além de proporcionar algumas características que agora fazem parte da idade moderna do país: como os queijos alpinos, trilhas de caminhada que cruzam as pastagens, o típico som dos sinos das vacas que ficam ecoando nas encostas das montanhas durante a temporada.
Em dezembro, a Unesco, agência da ONU, adicionou a tradição a lista de “patrimônio cultural imaterial”. Porém, tudo isto pode estar ameaçado.
Uma reportagem do jornal norte-americano The New York Times, publicada no fim do mês de janeiro, revelou como são essas tradições e como as alterações climáticas estão afetando este estilo de vida. Com o aumento das temperaturas, o derretimento das geleiras, diminuição da neve e o degelo precoce, os agricultores suíços estão precisando se adaptar.
A mudança é sentida de formas diferentes no país, devido aos Alpes, que criam microclimas diferentes. Alguns conseguem aproveitar as pastagens no verão, conseguindo estender suas temporadas, e têm bons rendimentos. Já outros vivenciam secas cada vez mais frequentes e intensas, os fazendo descer com os rebanhos mais cedo que o planejado.
Quanto mais evidente for o efeito sobre os suíços, maior será o problema potencial para toda a Europa.
A Suíça é considerada a “fonte d’água” da Europa, pois lá é o local onde as neves do Inverno se acumulavam e derretiam devagar durante os meses mais quentes, aumentando o escoamento das espessas geleiras que ajudaram a sustentar muitos dos rios europeus e os seus estilos de vida durante séculos.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, hoje, os Alpes estão aquecendo cerca de duas vezes mais rápido que a média global. Só nos últimos dois anos, os glaciares suíços perderam 10% do seu volume de água – quantidade do quanto derreteram nas últimas três décadas, entre 1960 e 1990.
Daniel Farinotti, um dos principais cientistas glaciares da Europa, já viu o Glaciar do Ródano recuar cerca de meio quilômetro e afinar, formando um grande lago glacial em sua base, desde que começou a estudá-lo em 2007. Também o observou ficar com uma coloração escura à medida que neve que o protege no inverno derretia e revelava a poluição dos últimos anos.
“Quanto mais escura a superfície, mais luz solar ela absorve e mais derretimento é gerado”, disse Farinotti, professor no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH Zurique), ao The New York Times.
Para conseguir chegar até a geleira pela estrada, seus alunos caminham por montes de lonas brancas, estendidas ao redor de uma caverna de gelo esculpida para turistas. O material pode ajudar a reduzir o degelo anual em até 60% , mas cobrem apenas uma porção minúscula das geleiras e em locais como pistas de esqui, onde há motivação financeira privada.
“Não é possível cobrir uma geleira inteira com isso”, disse Farinotti, que também trabalha para o Instituto Federal Suíço de Pesquisa de Florestas, Neve e Paisagens.
Com o intuito de preservar as tradições alpinas suíças, o governo tem tentado lidar com as mudanças com grandes projetos de infraestruturas para levar água ao topo das montanhas para os animais que pastam durante o verão.
As iniciativas ajudam para que, por enquanto, as tradições continuem, embora sobre clima tenso em alguns lugares. Depois de três dias escalando encostas rochosas e subindo degraus de pedra em ziguezague, as primeiras ovelhas de um rebanho gigante de quase 700 surgiram no horizonte, no final de seu "veraneio" no outono passado. No Hemisfério Norte, o outono começa em setembro.
As ovelhas viviam como “selvagens”, vagando por uma região alta e cercada por geleiras, há mais de três meses. Seu único contato com pessoas eram as visitas de um único pastor, Fabrice Gex, que diz perder mais de 13kg por temporada apenas caminhando pelo território para ver como elas estão. “Eu trago sal, biscoitos e amor para eles”, afirmou.
Os Sanners
Para trazê-los de volta para seus donos, que são, em maioria, agricultores amadores, uma equipe de pastores, conhecidos localmente como “sanner” do alto alemão médio, se juntou a ele. O trabalho é difícil e a remuneração é modesta. Porém, na região, é considerado uma honra participar de uma tradição que existe desde 1830, mas que muitos acreditam ter começado séculos antes.
Historicamente, os sanners levavam as ovelhas através da geleira Oberaletsch, mas com o derretimento, a rota se tornou instável e perigosa. Em 1972, a comunidade de Naters decidiu abrir caminho até uma rocha íngreme para oferecer aos pastores e ovelhas um caminho alternativo de volta para casa.
Pórem, nesta temporada, os pastores pretendem adiar o retorno em duas semanas, de acordo com o líder do grupo, André Summermatter, de 36 anos. “Com as alterações climáticas, o nosso período de vegetação é mais longo”, pontuou.
Tradição familiar nos Alpes
A tradição de pastoreio alpino, também conhecido como “transumância”, é conhecida por todos os Alpes, incluindo Áustria, Itália e Alemanha. Quase metade das explorações pecuárias da Suíça enviam as suas cabras, ovelhas e vacas para pastar durante o verão, de acordo com o último estudo aprofundado realizado por cientistas do governo, em 2014.
Mais de 80% do rendimento agrícola alpino vem de subsídios governamentais. Sendo muitos deles para manter as pastagens livres de árvores, que estão surgindo na colina com o aquecimento das temperaturas. Isso faz da Suíça um país raro que não adota a cobertura arbórea como solução para as alterações climáticas.
“Seriam apenas arbustos e florestas se não estivéssemos aqui”, disse Andrea Herger, entrando no celeiro de ordenha de sua família. “Não seriam paisagens tão abertas e lindas para caminhadas”.
Seu marido, Josef Herger, faz parte da terceira geração de sua família a administrar uma fazenda de verão alpina, que pode ser visitada por um teleférico particular. No lugar, eles criam sete vacas próprias e 33 dos vizinhos, que os pagam com leite de vaca que o casal usa para fazer queijo.
Mais a oeste, perto de L’Etivaz, a família Mottier leva 45 vacas ao longo da chamada “trem de montanha”, seguindo a grama recém-brotada até um cume de 2.030 metros, ou mais de 6.600 pés. Depois elas descem para comer grama. A partir de maio, o grupo irá fazer cinco viagens parando em três níveis.
Perto do pico, Benoît Mottier, 24 anos, sobe em um afloramento de calcário, decorado com as iniciais de pastores e os anos em que os esculpiram. O mais antigo que ele consegue encontrar foi deixado em 1700 por alguém com as mesmas iniciais que as suas, “BM”. Ele faz parte da quinta geração de sua família a criar vacas na região.
Os Mottiers são uma das 70 famílias da região que fabricam o tradicional queijo suíço, “L'Etivaz”. Para produzir, eles seguem regras rígidas, como aquecer lentamente leite fresco em um caldeirão gigante de cobre sobre uma fogueira de madeira de abeto. Depois de prensar, o queijo é levado até uma cooperativa local, onde é envelhecido e vendido.
O tal queijo só pode ser produzido nas encostas das montanhas locais durante seis meses do ano. A tradição é tão importante que até as crianças de famílias de agricultores locais podem deixar a escola semanas mais cedo para as férias de verão, só para ajudar.
“No início da temporada, estamos felizes que está começando”, disse Isabelle Mottier, mãe de Benoît. “No final da temporada, estamos felizes por estar terminando. Para nós, é uma vida de ciclos”.
Com as secas dos últimos anos, a família foi forçada a adaptar os cuidados. “Uma vaca bebe de 80 a 100 litros de água por dia”, explicou a Sra. Mottier. “Temos mais de 40 vacas. Precisamos de uma enorme quantidade de água”.
Em 2015, durante uma onda de calor, a nascente de onde a família obtém água secou. Três anos depois, outra onda de calor e seca atingiram o país. E novamente em 2022. Durante as secas, o Exército Suíço fornece água às pastagens alpinas por helicópteros. Os Mottiers, porém, não tinham tanques para armazenar.
Por isso, resolveram instalar uma bomba movida a energia solar para retirar água de uma nascente mais baixa. Também investiram em uma grande bolsa de água para armazenar a neve derretida no início da estação.
Quais são as medidas
A situação deve continuar piorando a medida que as geleiras derretem. A previsão é que as maiores geleiras do país, incluindo o Aletsch e Ródano, devem diminuir pelo menos 68% até ao final do século. Antecipando este acontecimento, o governo suíço quadruplicou o financiamento para projetos hídricos nos Alpes. Apenas em 2022, foram aprovados 40.
Ainda naquele ano, algumas famílias precisaram trazer seus rebanhos de vaca para os pés da montanha um mês antes do planejado devido à seca e ao calor. Já em outras regiões, as altas temperaturas estão tornando os campos mais produtivos, de acordo com Manuel Schneider, cientista do Agroscope, o Instituto Nacional de Investigação do governo suíço, e líder de um estudo de cinco anos sobre biodiversidade e produção de pastagens alpinas.
Essa variabilidade, no entanto, pode ocorrer até em uma única montanha, disse ele. Os agricultores com estações de ordenha móveis podem tirar proveito desta “heterogeneidade em pequena escala”, levando as suas vacas e máquinas de ordenha para áreas mais úmidas. “Quando o clima está mudando, é necessário ser flexível”, disse Schneider.
Em outros locais
Nos Alpes da Itália, próximo a Sankt Ulrich, a família de Thomas Comploi deve sorte. Como muitos agricultores, ele usa parte de suas terras apenas para a produção de feno, onde é íngreme demais para o gado pastar. Hoje, seus campos estão cultivando o dobro de grama do que há 15 anos.
Segundo ele, o governo de Bolzano-Tirol do Sul lhe dá subsídios para se prevenir contra avalanches e para a gestão de terras. “Tudo isto desapareceria sem os agricultores, estaria coberto de floresta”, disse Comploi, 48 anos, que trabalha na empresa local de teleféricos no inverno. “Estamos mantendo a tradição, a paixão e o modo de vida”.
Já nas comunidades alpinas suíças, a última descida no final do verão é uma verdadeira celebração desse estilo de vida. As famílias substituem os pequenos sinos de suas vacas pelos grandes, apenas para anunciar o momento.
“Quando você coloca os sinos grandes, [todos] sabem que estão descendo”, diz Eliane Maurer. Sua família é uma das que guiam 450 animais ao pasto durante a temporada. Eles ainda dividem a descida em turnos, para não causar buracos.