Cinzas de bagaço de cana viram componente para asfalto mais sustentável em rodovia do Paraná
Pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá transformaram o resíduo da cana, que seria descartado, em tecnologia para pavimentação
Você já se perguntou para onde vai todo o bagaço que sobra ao comprar o caldo de cana em uma barraquinha? No Paraná, pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá (UEM) encontraram uma solução sustentável: usar esse resíduo na produção de asfalto. A técnica não só dá um novo destino ao que seria descartado, mas também mostrou ser mais eficiente que a convencional para a pavimentação de estradas.
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É o que explica ao Terra o professor Jesner Sereni Ildefonso, coordenador da pesquisa de mestrado desenvolvida pelo engenheiro civil Vinicius Milhan Hipólito, que resultou no desenvolvimento de asfalto com cinzas de bagaço de cana. "A cinza do bagaço da cana, principalmente a cinza pesada, é composta basicamente de sílica, que é um material bastante estável e que a gente encontra na maioria dos minerais existentes", diz ele.
Essas cinzas são geradas durante a produção de energia renovável. No processo, caldeiras queimam o bagaço para gerar vapor, que movimenta turbinas e produz energia elétrica. É nesse mesmo processo que surgem as cinzas do bagaço de cana-de-açúcar, que normalmente seriam descartadas, mas que neste estudo foram transformadas em material reutilizável.
O professor explica que a estrutura do pavimento asfáltico inicia-se pela fundação, localizada na parte inferior, composta pelo solo resultante da terraplanagem. Sobre essa base, constrói-se uma estrutura interna formada pelas camadas de base e sub-base, responsáveis pela resistência do pavimento. Essas camadas podem ser constituídas por agregados e cimento ou apenas por agregados -- termo técnico que designa materiais rochosos, popularmente conhecidos como pedras.
A inovação da pesquisa está na substituição desses agregados convencionais, pedras de pedreira, pelas cinzas do bagaço de cana. "O que estamos substituindo é exatamente o agregado mineral, ou seja, a pedra britada proveniente de pedreiras", esclarece o pesquisador, que destaca a necessidade da continuidade do uso do petróleo no processo.
Aplicação eficiente
A pesquisa foi iniciada com testes laboratoriais que revelaram bons resultados: a substituição de 5% do agregado convencional por cinzas de bagaço de cana aumentou a resistência à tração em quase 30%. Outros ensaios demonstraram melhoria de 11% a 28% na resistência à deformação permanente, fator importante para suportar tráfego pesado.
Já em 2020, a equipe da UEM aproveitou uma oportunidade na BR-158, próximo a Campo Mourão (PR), onde um trecho da rodovia federal estava programado para manutenção. Com a colaboração de empresas de pavimentação, o material desenvolvido foi aplicado em escala real, sob controle de qualidade supervisionado pelo pesquisador Vinicius Hipólito.
Os resultados do monitoramento contínuo desde então comprovam que a mistura com cinzas apresenta desempenho igual ou superior à mistura convencional. As principais vantagens observadas foram:
- Maior resistência à tração (reduzindo fissuras e trincas no pavimento);
- Melhor estabilidade contra deformações permanentes (como as "costelas de vaca", que são corrugações ou ondulações formadas pelo tráfego pesado); e
- Superfície mais rugosa (aumentando o coeficiente de atrito e a segurança na frenagem).
"Estamos monitorando esse trecho desde a época da implantação até hoje. E o que a gente tem visto é um comportamento melhor ou igual à mistura convencional. Esse tipo de mistura poderia ser usado em qualquer local, mesmo de trânsito intenso e com veículos pesados. Além disso, o uso da cinza do bagaço da cana se torna mais barato por vários aspectos, isso porque tem uma maior resistência à deformação. Isso significa que as manutenções da estrada vão demorar mais a serem feitas. E quando feitas, serão para corrigir um problema mais simples", destacou Jesner.
Opções sustentáveis e sua urgência
Em 24 de julho, a humanidade já atingiu o preocupante marco do Dia da Sobrecarga da Terra, data em que nosso consumo anual ultrapassa a capacidade de regeneração do planeta. Em menos de sete meses, esgotamos os recursos naturais que deveriam durar um ano inteiro.
Calculado pela Global Footprint Network, organização internacional especializada em sustentabilidade, esse indicador revela uma tendência preocupante: desde os anos 1970, quando a data caía em dezembro, o limite vem sendo alcançado cada vez mais cedo. "Já extraímos da Terra mais do que ela pode repor em um ano", alerta o professor Jesner Sereni, destacando a urgência de soluções sustentáveis.
Nesse contexto, ele destaca que o aproveitamento das cinzas do bagaço de cana-de-açúcar surge como alternativa importante, já que o Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, com estimativas de produção que variam entre 663,4 milhões e 689,8 milhões de toneladas para a safra 2024/2025. O processo começa com a colheita da cana, que gera caldo (para produção de álcool e açúcar), bagaço (queimado em caldeiras para gerar energia) e cinzas (subproduto antes descartado).
"Sempre que precisamos extrair materiais novos da natureza, é algo que a natureza não consegue repor. Então, se conseguimos dar um destino mais nobre para materiais que estavam anteriormente sendo descartados e esse destino permita que a gente use menos material extraído da natureza, estamos sim preservando o meio ambiente", afirma o pesquisador.
O coordenador do estudo também destaca que ao substituir parte dos agregados minerais por cinzas de cana, é reduzida a extração de materiais de pedreiras, diminuindo o impacto ambiental. "O material possui granulometria similar à areia fina, justamente a fração que apresenta maior escassez em várias regiões, o que tem levado à exploração intensiva de areia de rio. Como a produção de cana é inerente ao nosso país, com sua cadeia produtiva já estabelecida para etanol e açúcar, esse resíduo estará sempre disponível de forma renovável. Aproveitá-lo integralmente significa otimizar todo o potencial desse ciclo sustentável", acrescenta.
Apesar dos resultados positivos em laboratório e no trecho experimental na BR-158, a ampliação do projeto depende, agora, de decisões políticas. "Comprovamos a viabilidade técnica, econômica e ambiental. Cabe aos órgãos competentes adotarem essa solução", conclui o pesquisador.
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