Pai de Madeleine McCann fala à BBC em rara entrevista sobre desaparecimento da filha
Gerry McCann, pai da menina Madeleine que desapareceu em 2007, disse à BBC que, para ele, os políticos têm medo da imprensa.
O pai da menina desaparecida Madeleine McCann pede maior fiscalização da imprensa britânica, depois de sua família ter sofrido tratamento "monstruoso" por setores da imprensa, segundo declarou à BBC.
Ele afirma que a imprensa "interferiu repetidamente com a investigação" do desaparecimento de sua filha, em 2007. E acredita que que isso tenha dificultado as buscas.
Em uma rara entrevista, Gerry McCann contou ao programa Today, da BBC Rádio 4, que deseja a retomada da segunda fase do chamado Inquérito de Lorde Leveson, que foi cancelada. Ela teria examinado ações ilegais da imprensa e as relações entre jornalistas, políticos e a polícia.
O príncipe Harry, duque de Sussex, veio a público apoiar o pai de Madeleine. Ele declarou que "defende firmemente todos os prejudicados por intromissões ilegais e antiéticas da imprensa".
Madeleine McCann desapareceu aos três anos de idade, durante um período de férias da família em Portugal. Ela nunca foi encontrada.
O príncipe expressou em declaração seu "total apoio à implementação das recomendações do Inquérito Leveson como reformas essenciais para proteger o público, defendendo ao mesmo tempo o jornalismo livre, justo e responsável".
McCann declarou à BBC que, nos meses que se seguiram ao desaparecimento da filha, sua família teve "jornalistas indo até a casa e fotógrafos batendo literalmente suas câmeras contra a janela do nosso carro, com os gêmeos de dois anos de idade apavorados no banco de trás".
"Tivemos sorte de sobreviver", contou ele. "Recebemos imenso apoio, mas posso dizer que houve momentos em que me senti como se estivesse afundando. E era, principalmente, por causa da imprensa."
"Foi o que aconteceu e a forma como tudo estava sendo retratado, com você sendo sufocado e enterrado", relembra ele. "Parecia que não havia como sair daquilo."
McCann destaca que, mais de um ano depois da chegada dos trabalhistas ao poder no Reino Unido, "a regulamentação da imprensa deixou de ser prioridade".
Ele e sua esposa Kate fazem parte de um grupo de mais de 30 pessoas que assinaram uma carta que foi enviada ao primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, pedindo que ele reverta a decisão tomada pelo governo conservador anterior, em 2018, de não prosseguir com a segunda fase do Inquérito Leveson.
Entre os signatários, estão as famílias das vítimas do desastre de 1989 em Hillsborough, a maior tragédia da história do futebol inglês, e a mãe da apresentadora de TV Caroline Flack, encontrada morta no seu apartamento aos 40 anos de idade, em fevereiro de 2020.
'É necessário tomar medidas'
A BBC teve acesso à carta, que pede uma reunião com o primeiro-ministro britânico.
"Entendemos que você reservou tempo recentemente para se reunir com o presidente da News Corp., Lachlan Murdoch", segundo a carta.
"Esperamos que, agora, você se reúna com alguns dos cidadãos britânicos cujas vidas foram viradas do avesso pelas práticas ilegais e abusos associados à sua empresa."
O escritório do primeiro-ministro britânico confirmou na quarta-feira (10/12) o recebimento da carta.
McCann declarou à BBC que "é bastante óbvio que os barões da imprensa podem se reunir com o primeiro-ministro, mas as pessoas que sofreram nas mãos deles não conseguem".
A filial britânica da News Corp., News UK, não quis comentar o assunto.
A secretária britânica da Cultura, Lisa Nandy, declarou ao programa de TV BBC Breakfast que o governo "descartou" a segunda fase do inquérito. Para ela, o cenário da imprensa, agora, é "muito diferente" e a maioria das pessoas consome suas notícias online.
Mas ela acrescentou: "De fato, reconheço que é preciso tomar medidas" e afirmou que se reuniria com McCann.
A primeira parte do Inquérito Leveson ocorreu entre 2011 e 2012, após o escândalo de escutas telefônicas ilegais do tabloide britânico News of the World (1843-2011).
Suas descobertas foram publicadas em 2012 e levaram à criação do órgão regulador da imprensa Ipso, financiado pelo setor.
McCann declarou à BBC acreditar que a segunda fase do inquérito, "com quase total certeza", não aconteceu porque os políticos britânicos teriam medo da imprensa.
Ele afirmou que, às vésperas das eleições gerais britânicas do ano passado, políticos trabalhistas se comprometeram a implementar as recomendações apresentadas na primeira parte do Inquérito Leveson. McCann ficou "extremamente decepcionado" por isso não ter acontecido.
"Este governo já tem mais de um ano e não houve nenhuma mudança", lamenta ele. "Para mim, não é aceitável que, agora, mais de um ano depois, Leveson e a regulamentação da imprensa não sejam mais prioridade."
Um porta-voz do Departamento de Meios Digitais, Cultura, Meios de Comunicação e Esporte do Reino Unido (DCMS, na sigla em inglês) declarou à BBC que "reconhece que, para as vítimas e suas famílias, os incidentes de assédio e intromissão da imprensa causam sofrimentos significativos".
"A secretária da Cultura se reuniu com indivíduos e famílias que sofreram este tipo de intromissão no passado e o governo está comprometido a garantir que essas falhas nunca mais se repitam", afirma o porta-voz.
'Colocamos a moral de lado'
McCann destacou que ele e a esposa se sentiram "advogados do diabo" quando trabalharam com o jornal The Sun em 2011, para fazer com que a investigação sobre o desaparecimento de Madeleine fosse analisada. Isso ilustra a influência do jornal.
"Uma carta foi publicada na primeira página do The Sun e o então primeiro-ministro David Cameron ordenou a revisão", ele conta.
"É o poder que eles tinham. Por isso, colocamos a moral de lado para trabalhar com eles e conseguir o que queríamos."
Ao criticar a cobertura da imprensa sobre a investigação, McCann declarou que eles "publicaram material que deveria ter sido mantido em confidencialidade, deveria ser passado para a polícia, declarações de testemunhas, muitas outras coisas que saíram."
"Por isso, se você fosse o perpetrador, teria ficado sabendo muito mais do que deveria. E, como vítima, como pai, é absolutamente decepcionante."
'Inventando histórias'
McCann prestou declaração como testemunha ao Inquérito Leveson, em seu próprio nome e de sua esposa, em novembro de 2011.
Ele descreveu na ocasião que os órgãos de imprensa "inventaram histórias" sobre eles e publicaram uma "série prolongada, imprecisa e maliciosa de manchetes em diversos jornais, que deram a impressão de que, de alguma forma, fomos responsáveis ou envolvidos no desaparecimento de Madeleine".
Ele também afirmou que, na época do desaparecimento de sua filha, o extinto jornal News of the World publicou transcrições completas do diário pessoal de Kate McCann.
A polícia portuguesa havia confiscado este diário, como parte da sua investigação sobre o desaparecimento de Madeleine. O casal "não sabe ao certo como o News of the World obteve uma cópia", segundo os registros do inquérito.
Na sua entrevista ao programa Today, McCann declarou que "Madeleine está desaparecida há 18 anos e a questão é que ainda não sabemos o que aconteceu com ela". Ele destacou que "não há nenhuma evidência".
"Não estou nem querendo dizer evidências 'convincentes'. Não há nenhuma evidência que diga que ela está morta", prossegue o pai. "Agora, entendemos completamente que ela pode estar morta e que pode até ser provável, mas não sabemos ao certo."
Um porta-voz do organismo regulador Ipso declarou à BBC que pode intervir diretamente em casos de assédio da imprensa.
"Incentivamos qualquer pessoa preocupada com o comportamento da imprensa a entrar em contato conosco, em busca de auxílio", declarou o órgão.