Ex-guerrilheiro, Mujica comeu sabão, perdeu dentes e bebeu a própria urina enquanto esteve preso
Líder uruguaio também sofreu de transtornos psiquiátricos e chegou a ser internado no Hospital Militar de Montevidéu durante o cárcere
Ex-guerrilheiro José Mujica enfrentou torturas e condições desumanas durante 14 anos de prisão, marcados por sua resiliência, estudo e consequências psicológicas; solto em 1985, tornou-se líder na redemocratização do Uruguai.
Durante os 14 anos em que passou na prisão, Pepe Mujica resistiu a muitas torturas e condições degradantes. As memórias do tempo de encarceramento, inclusive, contribuíram para moldar seu pensamento e atuação política.
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Diante de um cenário desumano, o ex-guerrilheiro tupamaro perdeu dentes, comeu sabão e até bebeu a própria urina para sobreviver. Mujica foi capturado definitivamente em 1972, após ter escapado duas vezes da prisão. Durante anos, esteve preso sem acesso a livros, luz solar ou higiene básica.
"Depois do sétimo ano de confinamento permitiram-me ter alguns livro, de técnica, ciência. Lá comecei a estudar muito: química, física, biologia", relembrou Mujica mais de 30 anos depois.
Em seus relatos ao longo da vida sobre tal período, Pepe narrou ter comido papel higiênico, sabão e até moscas, além de ter convivido diariamente com ratos em celas apertadas. Após implorar por um penico, já que não tinha acesso regular a um banheiro, Mujica posteriormente utilizou o recipiente para cultivar flores na prisão.
"Ficava feliz todas as noites em que conseguia dormir em um colchão, ou toda vez que conseguia beber um copo d'água, ou toda vez que conseguia urinar... Acho que é por isso que nunca precisei de muito desde então", revelou ao "ElPeriódico" em 2018.
Enquanto preso, o líder uruguaio também sofreu de transtornos psiquiátricos e alucinações, chegando a ser internado no Hospital Militar de Montevidéu pelas circunstâncias carcerárias.
No artigo "A ascensão política de José Mujica no Uruguai: de guerrilheiro tupamaro a Presidente da República", o historiador Dércio Fernando Moraes Ferrari atesta que Pepe foi preso em "vazio absoluto jurídico, já que não foi julgado nem acusado". Deste modo, a prisão do líder é considerada como um "sequestro militar" por historiadores do país.
Ele foi solto em 1985 após o retorno da democracia e aprovação de uma lei de anistia para presos políticos. Liberto, Mujica se dedicou à redemocratização do país e militou pelo fim ações radicais dos Tupamaros.
De guerrilheiro a 'presidente mais pobre do mundo'
Nascido em 20 de maio de 1935, em Montevidéu, Pepe integrou o Movimento de Liberação Nacional - Tupamaros. O grupo guerrilheiro, fundado por Raúl Sendic, era contra à liderança repressiva do Uruguai, ainda antes da ditadura militar. Atuava com roubos a bancos e empresas, distribuindo o saque entre os mais pobres.
O uruguaio foi preso três vezes ao longo da vida, uma delas por causa do assassinato de um policial. Ele fugiu da prisão duas vezes --incluindo a famosa fuga de Punta Carretas--, mas foi recapturado em ambas e cumpriu cerca de 14 anos no total. Em 1972, o ex-presidente levou seis tiros e quase sangrou até a morte na calçada, após revidar uma abordagem policial em uma pizzaria.
Como prisioneiro da ditadura militar que tomou o poder em um golpe em junho de 1973, Mujica foi torturado e passou longos períodos de tempo em confinamento solitário, como contou em seu livro biográfico Mujica, publicado por Miguel Ángel Campodónico em 1999.
O ex-presidente conta ter sido mantido em confinamento solitário, privado de livros, jornais e até mesmo de luz solar por ao menos 7 anos. Ele disse que chegou a comer papel higiênico, sabão e moscas para sobreviver. Mujica foi um dos militantes utilizados como refém pelo regime em troca do desmantelamento das guerrilhas. Em 1985, ele e os outros presos políticos foram libertados sob uma anistia geral.
O Tupamaro se juntou à coalizão de esquerda conhecida como Frente Ampla (FA) e se reorganizou como um partido político legal, o Movimento de Participação Popular (MPP), para as eleições de 1989.
Como uma das principais vozes do MPP, Mujica foi eleito presidente em 2009 em segundo turno contra Luis Alberto Lacalle. Se tornou um dos grandes líderes políticos da América do Sul e sua presidência --que durou de 2010 a 2015-- foi marcada por aprovação de leis pioneiras na América Latina como liberalização do aborto, legalização da maconha e casamento de pessoas do mesmo sexo.
Famoso por dirigir seu fusca azul, ganhou o apelido de “presidente mais pobre do mundo” devido às suas maneiras simples de viver. Um título que rejeitava. Pregava uma vida menos consumista e a Justiça Social, temas que marcaram a sua passagem pela presidência.
Após deixar o cargo, ele se tornou senador, posto que ocupou até 2020, quando se aposentou da vida política.
Em outubro do ano passado, em entrevista ao El País, Mujica falou sobre a morte. “Eu me dediquei a mudar o mundo e não mudei po*** nenhuma, mas estive entretido. E gerei muitos amigos e muitos aliados nessa loucura de mudar o mundo para melhorá-lo. E dei um sentido à minha vida. Vou morrer feliz, não por morrer, mas por deixar uma marca que me supera com vantagem. Nada mais”, declarou.