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Brasil perdeu a trajetória de crescimento que tinha conquistado, diz diretor da Cepal

Brasileiro Carlos Mussi aponta para o que chamou de "indecisão da sociedade brasileira": não distribui a riqueza nem define para onde crescer.

2 jul 2022 - 06h58
(atualizado às 10h59)
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Bolsa de Valores de SP
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Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Brasil perdeu a trajetória de crescimento econômico por falta de investimentos tanto por parte do Estado como do setor privado, diz o diretor do escritório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no Brasil, Carlos Mussi.

Economista com mestrado pela PUC do Rio de Janeiro, Mussi aponta para o que chamou de "indecisão da sociedade brasileira": não distribui a riqueza nem define para onde crescer. "Vamos investir mais em indústria e mais em serviço? Ainda não desenhamos como vamos crescer [...] e como as gerações futuras terão melhores oportunidades do que as atuais", afirma.

A Cepal é uma comissão da Organização das Nações Unidas criada para promover as relações econômicas entre os países da América Latina e Caribe e o resto do mundo.

BBC News Brasil - Qual é a sua opinião sobre a situação social do Brasil hoje?

Carlos Mussi - O Brasil passou por uma grande recessão em 2015 e 2016. Isso implicou uma revisão da trajetória de desenvolvimento ou crescimento do Brasil. Uma revisão da ação do Estado, dos programas de transferência [de renda], da evolução do emprego, da renda etc. E, consequentemente, nós regredimos em vários indicadores sociais nos quais estávamos evoluindo positivamente desde o início do século.

Hoje a situação social brasileira está influenciada por vários aspectos da pandemia, mas isso também decorre do fato de que não crescemos há quase dez anos. Portanto, renda, emprego e a própria mobilidade social têm sido muito dificultada.

O Brasil, digamos, perdeu a trajetória de crescimento desde "a grande recessão", com a pandemia e neste mundo pós-pandêmico que estamos vendo. Isso inclui, por exemplo, a elevação da taxa de juros americana, que são as maiores taxas desde 1994.

BBC News Brasil - Apesar do contexto internacional e deste histórico recente que o senhor resumiu, seriam apenas esses os fatores que respondem pela realidade de o Brasil ter hoje uma situação social que faz lembrar a época pré-Plano Real? Ou as medidas internas não estão acompanhando as necessidades?

Mussi - Primeiro, acho que o Brasil parece que perdeu ou tem dificuldade de voltar a crescer. Isso é uma questão da sociedade brasileira. Ou seja, de investir, de expandir, de aumentar a produtividade, ganhar competitividade. Segundo, a sociedade brasileira mostrou que para ela é muito importante a questão da redistribuição de renda. O que nos aconteceu nos primeiros 15 anos desse século. Mas isto tem custos. A ação do Estado.

Mas, principalmente, quando o setor privado não investe, quando o setor público não investe...E não há incentivo para que as pessoas, as camadas sociais se realizem, vamos dizer, em termos profissionais, de renda, de emprego…Nos anos 1970 crescer abaixo de cinco por cento era um horror pro Brasil. Tivemos a crise externa, tivemos a possibilidade de voltar a crescer depois do real e especialmente no ciclo de commodities. Mas perdemos essa trajetória.

BBC News Brasil - O Brasil perdeu a trajetória de crescimento?

Mussi - É, [perdeu a trajetória] de uma sociedade que quer crescer, expandir, gerar emprego, renda, fazer a distribuição, gerar novos setores. Investir em ciência e tecnologia. Quer dizer, hoje estamos em um momento em que o setor privado está muito incerto, por causa também da ação do Estado, e o Estado não tem mais aquela liderança em investimento em infraestrutura que teve no passado.

BBC News Brasil - O senhor acha que tem a ver com o contexto atual do Brasil?

Mussi - Acho que tem a ver com uma certa indecisão da sociedade brasileira que vai além do objetivo de redistribuir, mas também por onde crescer. Vamos investir mais em indústria e mais em serviço?

A agricultura respondeu de uma certa forma até muito positivamente. Mas o que o Brasil deseja em termos de oferta, em termos de produtos, de competitividade internacional? Como fazer para administrar sua demanda?

Há o papel do Estado, há a necessidade de não gerar desequilíbrios macroeconômicos e há também a ideia de sustentabilidade. Uma sustentabilidade ambiental, econômica, no sentido de que você não pode ter setores eternamente subsidiados ou preferidos, decorrente de renúncia fiscal ou desequilíbrios estruturais - a Previdência, a estrutura de salários do setor público e uma certa eficiência… Por exemplo, na questão ambiental a palavra que eu gostaria muito que o Brasil debatesse é a sua governança dos recursos ambientais.

BBC News Brasil - Na sua visão, o âmbito social mudaria dependendo do resultado eleitoral?

Mussi - O social tem desde renda, emprego e até aumento de salário, usando o [patamar de] emprego decente da OIT (Organização Internacional do Trabalho), a mobilidade social, de produtividade para os salários, de uma forma não inflacionária. Essa é a parte econômica.

Mas o social também tem, digamos assim, os indicadores clássicos sociais, de saúde, de educação, o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] do Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento]. E o social também tem a questão distributiva em que entra um pouco a renda e tem a política.

E aí entra a questão de uma certa coesão social para resolver os problemas políticos. Ter um certo consenso sobre quais as opções do país ou de como o Estado deve atuar. E de tal forma que mantenha o setor privado incentivado para expandir seus investimentos. E o setor privado é tanto o nacional quanto o externo.

O diretor do escritório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no Brasil, Carlos Mussi
O diretor do escritório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no Brasil, Carlos Mussi
Foto: Cepal/Divulgação / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O senhor vê perspectivas de melhora?

Mussi - Primeiro, temos a questão conjuntural da pandemia, que fez uma revisão de formas de trabalho, das formas de renda. Ela criou um hiato grande entre oferta e demanda e isso reflete um pouco a questão da inflação. E isso é algo mundial. Segundo, nós ainda não desenhamos como podemos crescer, como vamos manter a expansão da perspectiva de que as gerações futuras terão melhores oportunidades do que as gerações atuais.

BBC News Brasil - Um levantamento recente da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que a economia global vai crescer cinco vezes mais do que a brasileira. Onde o Brasil está errando para estar há tanto tempo com crescimento tão baixo?

Mussi - Primeiro, acho que aí entra a questão fiscal. Ou seja, o papel do Estado, que, especialmente aqui no Brasil, é um grande agente econômico. Ele capta sempre um terço via impostos. Gasta cerca de 40% do PIB [Produto Interno Bruto]. O consumo estatal é algo como 20% do PIB. Ele paga juros de 4%, 5% do PIB e tem uma dívida em torno de 80% ou 90% do PIB.

E tem uma ação que o Estado brasileiro deixou de fazer, que é investir. Nem o Estado está investindo o básico e nem o setor privado frente às incertezas do Estado… O investidor privado tem sempre este sócio oculto que é o Estado. Ele tem que pagar impostos, ele quer saber se a economia vai crescer para ter demanda e qual vai ser o patamar dos juros que ele vai ter que pagar para financiar seu investimento ou até ver o custo de oportunidade.

O Brasil sempre foi muito oito ou oitenta. Então, para mostrar que havia um certo desejo de ter uma trajetória sobre os gastos, criou-se o teto de gastos.

BBC News Brasil - A questão dos combustíveis é uma das mais debatidas hoje no país...

Mussi - Olha, o projeto econômico do ministro [Paulo] Guedes era de um liberalismo que não foi muito bem discutido com a sociedade e com o Congresso. Frente à pandemia, ele teve que atender [as necessidades] em vez de fazer o projeto dele. Não estou dizendo se está certo ou errado, mas que ele tinha uma proposta…

Nós estamos com o principal agente da economia [o Estado] em reforma, mas ela não está desenhada ou concluída. As questões de urgência, como a do combustível, ficam como aquele "já que... então, vamos fazer isso". Mas aí a reforma inicial do projeto se torna totalmente difícil de se ver.

"A situação social brasileira está influenciada por vários aspectos da pandemia, mas isso também decorre do fato de que não crescemos há quase dez anos. Portanto, renda, emprego e a própria mobilidade social têm sido muito dificultada", diz Carlos Mussi
"A situação social brasileira está influenciada por vários aspectos da pandemia, mas isso também decorre do fato de que não crescemos há quase dez anos. Portanto, renda, emprego e a própria mobilidade social têm sido muito dificultada", diz Carlos Mussi
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O Brasil mantém uma vulnerabilidade na parte estreatégica?

Mussi - Acho que há ainda algumas coisas em termos da vulnerabilidade do papel do Estado. Ou seja, qual é a nossa política de energia? Qual é a nossa política de educação? No pós-pandemia, como vai ser a saúde? Estamos precisando de redefinições sobre ciência, tecnologia e inovação. Como vamos refazer as cidades, o transporte público.

BBC News Brasil - Não existe hoje o risco de uma herança fiscal ainda mais pesada no próximo ano?

Mussi - No Brasil, a herança vem da época da colônia. Herança é algo que todo governo diz que recebe. Então, o atual governo, se reeleito, ou uma outra administração, vai ter anos difíceis. Primeiro porque a inflação, no curto prazo, dá uma certa melhora nos resultados fiscais porque aumenta a arrecadação e você segura, você controla os gastos.

O governo no próximo ano vai ter que lidar com questões das reformas... A reforma tributária é um item importante tanto para uma visão mais liberal como para uma visão mais à esquerda. Os benefícios dos servidores públicos, como fazer? E depois tudo isso acaba na evolução da dívida e como os mercados vão sustentar a renovação e a situação da dívida pública brasileira.

Além disso, o Brasil não é uma ilha, e o que vier de condições do mundo também acho que será difícil. Ainda está muito incerto devido à situação internacional.

BBC News Brasil - Que medidas são importantes, na sua visão, até para alavancar o crescimento?

Mussi - Eu acho que, primeiro, uma discussão sobre as metas fiscais que o governo tomará como base. Segundo, o empenho do governo em recuperar os níveis de investimentos públicos. Podem ser investimentos diretos, investimentos através de parcerias público-privadas. São vários mecanismos. Será preciso discutir uma política de investimentos públicos e como será feita.

BBC News Brasil - Dados recentes apontam que 33 milhões de pessoas passam fome ou passaram fome em algum momento no Brasil. O que se pode fazer para reduzir a pobreza no país?

Mussi - Pobreza você tira basicamente por emprego e renda. É preciso gerar emprego e renda. Já as políticas de fome... entra muito renovar ou expandir as atividades brasileiras. Eu vejo que a iniciativa da merenda escolar, dos programas de alimentação, a questão do Auxílio Brasil... A inflação está corroendo muito esses valores e tem que ver como calibrar isso.

BBC News Brasil -Quais seriam as suas sugestões?

Mussi - Hoje, primeiro seria "horizontalizar" ao máximo o Auxílio Brasil no sentido de abranger o maior número de pessoas. A gente teve uma experiência assim, durante a covid, que foi o auxílio a R$ 600 reais. Isso, no papel, eliminava a extrema pobreza, pelo menos. A merenda escolar, por exemplo, poderia ser não só para a época escolar, mas para o ano inteiro. Mas são políticas de emergência.

BBC News Brasil - A previsão, então, é de muito trabalho para o governo no próximo ano?

Mussi - É, ele vai ter que apagar o fogo, reconstruindo a casa.

- Esse texto foi originalmente publicado aqui

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